Artigo | A OAB Conquista e o fim de uma desastrosa longevidade patriarcal e racista

Por - 24 de maio de 2022

Em novo artigo de opinião para o Conquista Repórter, o professor Herberson Sonkha destaca os avanços da OAB - Subseção de Vitória da Conquista diante do início da gestão da professora Luciana Silva como presidente da entidade.

A OAB – Subseção de Vitória da Conquista merece o reconhecimento e apoio dos movimentos sindicais e sociais do município. Refiro-me especificamente à gestão de Dra. Luciana Silva e às Comissões que compõem a subseção atualmente, na pessoa do advogado e mestrando João Daniel, que assumiu a secretaria da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa. Estendo o reconhecimento ainda a todas as outras pessoas respeitáveis que advogam.

Numa conjuntura de escalada ultraliberal e fascista, nada melhor do que uma mulher que pesquisa, discute, formula e constrói a luta social contra a violência de gênero para assumir e tocar com êxito a direção regional da OAB. Mesmo caminhando a passos lentos para rupturas paradigmáticas imprescindíveis na sociedade, esse movimento interno tem levado a mudanças importantes na Ordem.

Um bom exemplo disso é justamente a presença de uma mulher na presidência da entidade quase cinquenta anos após a sua criação, marcando o princípio do fim dessa desastrosa longevidade patriarcal. Essa paridade de gênero ainda é lerdíssima na OAB no Estado. E em comparação a outras subseções existentes na Bahia, a subseção conquistense tem se mostrado mais combativa ao patriarcado em função da constante efervescência do debate de classe, raça e gênero.

E mesmo diante dessa efervescência, o Brasil ainda vivencia formas históricas de relações de poder hierarquizadas pelos homens. Em nosso país, persistem modelos organizacionais patriarcais com estruturas de poder calcificadas, principalmente àquelas conservadoras que atravessam as estruturas dos três poderes, principalmente o judiciário brasileiro, baiano e conquistense.

Contudo, durante a cerimônia de posse das comissões da OAB – Subseção Vitória da Conquista, em 18 de maio, o auditório daquela casa quase cinquentenária dizia coisas alvissareiras sobre a administração política daquele espaço que se propunha coletivo. Dizia manter os ventos soprando na direção dos movimentos sociais, das populações em múltiplas situações de riscos sociais, econômicos, culturais e políticos.

A grande sala estava completamente lotada por pessoas que advogam voluntariamente em favor de quem tem os seus direitos fundamentais brutalmente subtraídos pela sanha autoritária de quem governa a institucionalidade (ou empresas privadas) como se fosse um trator a atropelar a diversidade que encontra pela sua frente. Essas ações importantes da OAB são distintas e os nomes são recebidos com acuidade, sobretudo porque é gente bastante reverenciada na cidade, a época, como o advogado Coriolano Sales, Evandro Gomes Brito, Élquisson Soares e Vicente Cassimiro. Esse último, muito amigo de meu pai Alício Alves da Silva (Silva), de saudosa memória.

Não posso deixar de expressar a minha admiração intelectual, apreço e o meu respeito profissional a esses advogados ímpares que também dirigiram a OAB Subseção de Vitória da Conquista nesses quase cinquenta anos, a exemplo de Ruy Hermann Araújo Medeiros e Dra. Luciana Silva, sendo a última menção um aparte especial por ser, conforme já disse antes, a primeira mulher a ocupar esse lugar inexoravelmente masculino.

Embora muitos saibam, vale a pena relembrar que a verticalização acadêmica de Dra. Luciana Silva tem funcionalidade na sociedade atual, e sua prática acadêmica como doutora em Ciências Sociais (PUC-SP) tem produzido excelente conhecimento científico. Além de subsidiar o debate do movimento de gênero, ela cria mecanismos institucionais de proteção, promoção, busca pela igualdade e emancipação de gênero na sociedade, o que lhe rendeu o merecido prêmio “Construindo a Igualdade de Gênero” e a criação da primeira Clinica de Direitos Humanos da Bahia (CDR), um projeto de extensão coordenado pela professora Luciana e vinculado ao departamento de Ciências Sociais Aplicadas (DCSA) da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb).

Essa gestão entrará para a história como um grande divisor de águas, pois conta com a experiência no campo dos direitos humanos; o acúmulo exponencial com a pesquisa e a vivência prática de Dra. Luciana Silva com o projeto de extensão. Tudo isso, somado à trajetória de conquistas históricas da entidade, possibilitará um salto gigantesco. O texto publicado no site sobre a história da OAB – Subseção de Vitória da Conquista traz essa trajetória da instituição desde a luta pela criação da Ordem, em 1978, sob a liderança do escritor, professor, historiador e advogado Dr. Ruy Hermann Araújo Medeiros.

O pleito era antigo, mas se tornou um movimento da sociedade com várias reuniões no salão da Câmara Municipal de Vereadores, que contou com nomes importantes que fortaleceram essa articulação. Sem menosprezar nenhum desses advogados, não podemos nos esquivar do fato de que esse foi um movimento predominantemente constituído por homens, com exceção de Ariene Meira, que também liderou o movimento que conseguiu com o Conselho Seccional da OAB-BA criar a subseção, tendo como primeiro presidente o advogado Coriolano Sousa Sales, eleito em chapa única.

A OAB local foi forjada no calor da luta da população conquistense contra a ditadura militar, pois Vitória da Conquista experienciava a grande greve de catadores de café (anos 1970). A luta contra a exploração capitalista das oligarquias cafeeiras criou capilaridade e inserção nas áreas periféricas e campesinas do município de onde vinham famílias de catadores. Nesse contexto, a subseção tornou-se uma entidade atenta às contradições de classe mais elementares da sociedade conquistense.

As comissões devem se inserir na dinâmica do movimento real da sociedade conquistense, procurando intervir técnica e teoricamente em questões estruturais que ampliam as mazelas sociais e dilemas que interpõem as relações de classe, raça e gênero. Para isso, a Dra. Luciana Silva conta com a tesoureira Dra. Daniela Miranda e a conselheira seccional Dra. Yldene Martins. Notadamente, a Dra. Yldene Martins, por ser uma mulher negra sentada à mesa, dá continuidade ao espírito combativo da advogada Esperança Garcia, “mulher, negra, escravizada e a primeira advogada do Piauí”, como menciona artigo da pesquisadora Dra. Sinara Gumieri em publicação do Portal Geledés, em outubro de 2017.

Lembrei-me da atividade simbólica que substituiu o nome da principal Avenida de Teresina (PI), que antes era denominada com o nome de um marechal golpista torturador, mas que passou a se chamar Esperança Garcia. Uma mulher negra da segunda metade do século XVIII, por volta de 1770, período que se tem notícia de uma carta embrionária da luta por direitos sociais e políticos, endereçada à autoridade colonial Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, governador da Capitania de São José do Piauí. Esperança Garcia, à época com 19 anos, se colocou contra as estruturas do perverso colonialismo português por meio de documento que condiz perfeitamente com o verbete do ofício advocatício da época, podendo ser caracterizado como uma petição.

Essa era a importância na cerimônia de posse da Dra. Yldene Martins como conselheira da Seccional Bahia da OAB, vinculando-a ao nascimento e luta incessante contra um regime excruciante para as populações negras, sobretudo para as mulheres negras. Garcia nasceu em 1751, na Fazenda Algodões, que pertencia aos jesuítas, no município de Nazaré do Piauí, também berço da ancestralidade de Dra. Yldene Martins, que conquistou aquele espaço. Fiquei a imaginar uma petição de Dra. Yldene Martins interpelando a ordem do Marquês de Pombal contra a expulsão de Esperança Garcia da fazenda e pedindo a revogação da condenação de escrava, visando impedir que Garcia fosse subjugada ao terrível capitão Antônio Vieira de Couto.

Esperança Garcia, por sua vez, encaminhou uma petição à autoridade do poder monarquista escrevendo os primórdios da “história de resistência no período colonial”, como afirma a pesquisadora Sinara Gumieri ao mencionar esse documento no artigo do Portal Geledés, requerendo o direito de retornar à Fazenda Algodões, inclusive poder batizar sua filha com os jesuítas. Apenas em 1998 Esperança Garcia recebeu do Conselho Estadual da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PI) a certificação simbólica de primeira mulher advogada do Piauí, requerido pela Comissão da Verdade da Escravidão Negra da OAB-PI.

Segundo a Dra. Luciana Silva, acerca da origem da descoberta da carta que tornaria Esperança Garcia (re)conhecida como a primeira mulher negra escravizada advogada do Brasil, certificou-me ter sido o historiador Luiz Mott o autor da descoberta documental. De fato! Luiz Mott estava pesquisando para o mestrado em 1979 quando se deparou com um manuscrito feito à mão no arquivo público de Piauí. Mott, em sua obra “Piauí Colonial: população, economia e sociedade”, analisa o documento como uma das primeiras cartas de direitos de conhecimento público, cujo teor expressa a resistência de quem ousou lutar por direitos num contexto de vigência do regime escravagista, um século antes da abolição e da república.

Garcia aprendeu a ler e escrever fluentemente na língua portuguesa na catequese com os padres jesuítas. A expulsão dos jesuítas do país pelo Marquês de Pombal e a transferência de Esperança Garcia da fazenda a outros senhores de escravo a separou do marido e dos filhos. Uma petição atravessada de indignação e ânimo para enfrentar os “maus-tratos, autoritarismo e demandar o direito de viver livre de violência para si e para os outros”, conforme matéria da página do Instituto Esperança Garcia.

Nesse sentido, as lutas e reivindicações dessas advogadas feministas não podem ser compreendidas como histeria de mulher ou algo menor, parafraseando a advogada Esperança Garcia, que “se reconhece e atua como membro de uma comunidade política, pedindo aquilo que lhe era de direito segundo ordenamento jurídico da época”. Essas mulheres dirigentes da Subseção Conquistense e suas Comissões compreendem criticamente o mundo opressor, os racismos e o patriarcalismo machista e misógino em que vivem, muito embora elas estejam para além dele.

A OAB, por meio desses Seres Humanos, busca superar as limitações históricas herdadas do patriarcalismo, principalmente àquelas oriundas do regime escravagista. Portanto, reafirmam traços elementares que surgem na luta por direitos humanos, brotando desde os estertores das “senzalas, das ruas, dos lugares onde as sujeitas historicamente oprimidas se insurgem por liberdade e igualdade”.

*Herberson Sonkha é um militante comunista negro que atua em movimentos sociais. Integra a Unidade Popular (UP) e o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB). É editor do blog do Sonkha e, atualmente, também é colunista do jornal Conquista Repórter.

Foto de capa: Ascom OAB Conquista

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