Organizar para resistir: retomada do MNU em Conquista amplia mobilização da população negra

Por - 31 de julho de 2025

No mês em que o Movimento Negro Unificado completa 47 anos, a coordenação do núcleo municipal é eleita. A reorganização do grupo fortalece outros coletivos presentes na cidade.

MNU-Conquista

Em 1978, Robson Silveira da Luz, de 21 anos, foi torturado até a morte pela ditadura militar, em São Paulo. No mesmo ano, quatro meninos foram impedidos de entrar em um clube paulista. Em outro extremo da cidade, o operário Nilton Lourenço foi morto pela Polícia Militar. Eram todos negros. Os episódios foram motor para a criação do Movimento Negro Unificado (MNU). Mais de quarenta anos depois, o MNU existe e resiste espalhado por todo o país, inclusive em Vitória da Conquista.

No mês em que a organização completa 47 anos de atuação na luta antirracista, um encontro realizado na Escola Estadual Dom Climério Almeida de Andrade marca um momento de retomada e fortalecimento da população negra em Conquista. No dia 25 de julho, militantes, educadores, estudantes e lideranças comunitárias da região se reuniram para eleger a coordenação do núcleo municipal do MNU.

A reorganização do grupo vem sendo construída desde 2023, impulsionada pelo professor Flávio Passos. Em parceria com a coordenação estadual do MNU, ele viabilizou a participação de militantes da cidade em uma formação política em Salvador. O momento coincidiu com as celebrações dos 200 anos da Independência da Bahia, que despertaram um desejo coletivo de reestruturar o núcleo local.

“O MNU tem sido espaço de formação, acolhimento e fortalecimento da consciência política da população negra da cidade, especialmente das periferias”, ressalta Mickelle Xavier, coordenadora de cultura do MNU-Conquista. Foi ela quem cedeu o espaço do Centro de Educação e Cultura Ernestina Maria de Souza, no bairro Miro Cairo, para a realização, no dia 14 de junho, de um dos encontros formativos que antecedeu a eleição da nova coordenação.

Registro do encontro realizado no Centro de Educação e Cultura Ernestina Maria de Souza, no bairro Miro Cairo, no dia 14 de junho. Foto: Arquivo/MNU-Conquista.

Mas o movimento negro em Vitória da Conquista nunca deixou de existir. A retomada do MNU é uma ação que se soma a outras articulações presentes no município, como as atividades realizadas por grupos de capoeira, associações de comunidades quilombolas e indígenas, assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), coletivos de Hip Hop, terreiros e bibliotecas comunitárias.

“A gente tem muitos coletivos separados que estão dentro do movimento negro. A organização dessas pessoas no MNU, se conhecendo, se movimentando, é uma ferramenta importante para combater essa imagem de Suíça Baiana que Vitória da Conquista carrega e que tenta embranquecer a cidade”, diz Rafael Vargues, rapper e produtor cultural conhecido como T’elegua.

Organizar para resistir

Neste ano, não apenas a reativação do MNU fortalece a luta antirracista na cidade, como também a eleição dos integrantes do Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial (Comppir) para o biênio 2025-2027, a retomada da Conferência Municipal da Igualdade Racial após mais de 10 anos, e a criação do Pré-Vestibular Mãe Fátima de Xangô, iniciativa voltada para juventudes quilombolas e periféricas, que surgiu do Quilombo de Vó Dôla.

“Nós vivemos numa cidade elitista, majoritariamente conservadora e que se autointitula Suíça Baiana. Esse apelido não é apenas por causa do clima. Nós sabemos que há todo um conceito por trás disso, que é de tentar tornar essa cidade mais branca. Então a gente faz esse movimento de retomada para trazer a valorização e a existência do povo negro no município”, afirma Nana Aquino, presidente do Comppir.

De acordo com o último Censo IBGE, realizado em 2022, mais de 70% dos moradores de Vitória da Conquista se autodeclaram negros. São a maioria da população e, ao mesmo tempo, as pessoas mais marginalizadas. O racismo institucional, o genocídio da juventude negra, a violência obstétrica contra mulheres negras e o racismo religioso são violências que fazem parte do cotidiano desse grupo.

Diante da ausência do olhar do Poder Público para essas questões urgentes, nascem coletivos e organizações como o MNU. “Eu vou falar que o comprometimento do governo municipal é limitado para não dizer que é inexistente. Porque quando pensamos em qualquer ação, seja de formação ou cultural, direcionada à população negra e periférica, ela vai ser feita pela própria população. Somos nós fazendo por nós mesmos”, destaca T’elegua, coordenador de articulação do MNU-Conquista.

 A 4ª Conferência Municipal de Promoção da Igualdade Racial aconteceu no dia 5 de junho, no Cemae, e reuniu representes de povos de terreiro, quilombolas, indígenas e diversos outros grupos. Foto: Secom/PMVC.

Para Letícia Figueredo, arte-educadora e coordenadora-geral do MNU local, a gestão municipal é um dos agentes que institucionalmente viola direitos da população negra. “Não conseguimos identificar ações antirracistas do Poder Público. Muito pelo contrário. As práticas do governo são de desmobilização, fechamento de escolas quilombolas, bibliotecas, escolas públicas”, enfatiza.

Um levantamento feito pelo Conquista Repórter em 2023 revelou que, desde 2018, pelo menos 14 escolas municipais localizadas em áreas quilombolas foram desativadas pela Prefeitura. Em 2024, o Ministério Público Federal (MPF) abriu um inquérito para investigar os fechamentos. Já a gestão Sheila Lemos se limitou a justificar as desativações alegando “falta de alunos” em algumas unidades.

Racismo institucional

A violência policial é outra realidade enfrentada especialmente por jovens negros no município. Neste mês de julho de 2025, um adolescente de 15 anos foi coagido pela Guarda Municipal (GM) e exposto em vídeo publicado nas redes sociais por agentes da própria instituição. Em julho de 2021, um casal já havia denunciado ter sido vítima de racismo em uma ação truculenta da GM no Centro da cidade.

“Todo jovem negro, ao voltar do trabalho com sua mochila nas costas, é frequentemente confundido com um suspeito. Ele vira um alvo”, denuncia Letícia Figueredo. A violência, porém, não se limita a abordagens policiais. Dentro do Sistema Único de Saúde (SUS), outra forma de agressão atinge as mulheres negras, especialmente nas unidades básicas de saúde e nas maternidades. 

Segundo Letícia, as denúncias de violência obstétrica, desrespeito e negligência no atendimento à saúde são recorrentes, revelando o racismo institucional que submete mães negras a tratamentos desumanos. O cenário local é reflexo de um país racista, onde adolescentes ou mulheres com mais de 35 anos, negras, usuárias do SUS, com baixa escolaridade, têm mais risco de sofrer violência obstétrica.

O racismo religioso é mais uma violência institucional que atinge a população negra. Apesar das garantias legais de respeito à diversidade religiosa, como prevê a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em Vitória da Conquista, crianças e adolescentes, especialmente aqueles adeptos às religiões de matriz africana, sofrem agressões de colegas de sala, professores e até diretores de escolas.

Mais de 70% dos municípios brasileiros não aplicam a lei que obriga a inclusão da História e Cultura Afro-Brasileira no currículo da rede de ensino. Foto: Karina Costa.

Para representantes do MNU-Conquista, uma das ações urgentes para assegurar direitos e cobrar ações concretas do município para a população negra é a atualização do Plano Municipal de Igualdade Racial. “A gente bateu muito nessa tecla na Conferência. Isso é essencial porque esse documento vai direcionar ações específicas que o governo precisa cumprir para promover a igualdade racial”, explica Letícia.

Cultura como resistência

Diante da escassez de políticas públicas e das violências cometidas pelo próprio Estado, a cultura é um dos pilares do movimento negro. “A arte vem com aquele primeiro professor a falar sobre violência policial, racismo estrutural e muitos outros assuntos que o jovem vive na pele, mas às vezes não sabe o que é ou que nome leva”, conta o rapper e produtor cultural T’elegua.

Grupos de cultura e educação, como Pacifistas do Gueto, Conquista Slam, Associação de Hip Hop de Vitória da Conquista, Centro de Educação e Cultura Ernestina Maria de Souza, Pré-vestibular Dandara dos Palmares, Kilombeco e tantos outros são espaços onde jovens negros se expressam através da arte e mantém viva a memória, identidade e os saberes ancestrais. São também esses coletivos que estão construindo juntos a retomada do Movimento Negro Unificado em Vitória da Conquista.

Um dos projetos do Centro de Educação e Cultura Ernestina Maria de Souza é a Biblioteca Comunitária do Miro Cairo, onde o acervo evidencia o protagonismo negro. Foto: Karina Costa.

Com a reativação do núcleo local, uma das pautas é também a reivindicação de políticas culturais voltadas para as populações periféricas e do campo. “Nós temos a PNAB, que é importante, mas não deve ser a única política cultural que vai movimentar a cena. A gente sente muita falta do Poder Público fortalecer parcerias com nossos coletivos e manifestações culturais”, ressalta Letícia Figueredo.

Para Mickelle Xavier, coordenadora do Centro de Educação e Cultura Ernestina Maria de Souza, no bairro Miro Cairo, os espaços culturais são essenciais para o fortalecimento da luta antirracista. “Atuamos com poucos recursos, mas com muita dedicação, sempre com o objetivo de fortalecer a autoestima da população negra, combater o racismo e promover uma educação antirracista”, afirma.

Próximos passos

Com a coordenação eleita, o MNU-Conquista agora se dedica à formação de lideranças e mobilizadores. A composição do núcleo contempla diferentes setores. Além de Letícia, Mickelle e T’elegua, formam o grupo Welder Cardoso, coordenador de educação; Amom Santos Souza, que assume a coordenação de organização e saúde; Keu Souza, com a coordenação de formação política; e Nana Aquino, na área de imprensa e comunicação.

Entre as prioridades da gestão estão, além do combate à violência policial e à violência obstétrica contra mulheres negras, a cobrança e acompanhamento da atualização do Plano Municipal de Igualdade Racial e o fortalecimento das articulações com outros coletivos para enfrentamento ao racismo.

Ao longo dos mais de 40 anos de trajetória, o MNU foi essencial para a conquista de direitos como a criação da lei 10.639, que obriga a inclusão da História e Cultura Afro-Brasileira no currículo da rede de ensino do país; a titulação de terras quilombolas; o reconhecimento de Zumbi dos Palmares como herói nacional; e a lei de cotas nas universidades e no serviço público brasileiro.

Em 2025, ainda existem muitos desafios, inclusive ações necessárias para que leis como a 10.639 sejam de fato aplicadas nas escolas. Por isso, o MNU segue vivo em diferentes cantos do mapa, inclusive no interior da Bahia. “A realidade de Vitória da Conquista é muito cruel para a população negra, então a gente tem que se organizar, porque senão o que já tá difícil vai ficar pior”, finaliza T’elegua.

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