“O feminismo é uma teoria da igualdade social e não da supremacia de um gênero sobre outro”

Por - 9 de julho de 2021

Eleita presidente do Conselho Municipal da Mulher de Vitória da Conquista em abril deste ano, Maria Otília Soares conversou com o Conquista Repórter sobre feminismo, os números alarmantes do feminicídio na cidade e as próximas ações do conselho

Militante feminista, dirigente do PCdoB (Partido Comunista do Brasil) e da seção municipal da União Brasileira de Mulheres (UBM), Maria Otília Soares foi eleita presidente do Conselho Municipal da Mulher de Vitória da Conquista, em abril deste ano. Desde que assumiu a posição, ela vem reorganizando, junto com 14 conselheiras, a estrutura do órgão que, segundo Otília, atuou de forma tímida e apática durante os últimos quatro anos. 

Feminista desde criança, como ela mesma se autointitula, a nova presidente do conselho conversou com o Conquista Repórter sobre as ações futuras da entidade para o combate à violência contra a mulher, o cenário de feminicídio na cidade e o impacto da falta de representatividade feminina na Câmara Municipal na construção de políticas públicas para as mulheres. Confira:

CR: Em abril deste ano, você foi eleita presidente do Conselho Municipal da Mulher de Vitória da Conquista. Mas antes de assumir essa posição, sempre esteve muito próxima da luta por políticas públicas para as mulheres em Conquista, principalmente pela trajetória na União de Mulheres. Como você avalia o trabalho do conselho nos últimos quatro anos?

Maria Otília: O conselho esteve numa gestão um pouco apática por conta da falta de participação. Ficou sem mandato por quase dois anos. A última presidente respondia pelo órgão, mas já com vacância de mandato. Então, nos últimos quatro anos, o conselho esteve meio apático, participava mais dos atos de 8 de março, daquele período que se comemora os 16 dias de ativismo pelo fim da violência contra a mulher. A atuação estava muito tímida, mas agora estamos reorganizando o conselho para que ele possa dar conta dessas temáticas, principalmente da violência contra a mulher, que nessa pandemia tem aumentado muito. Estamos muito preocupadas com isso. Recebemos várias denúncias. A gente entra em contato com essas pessoas, contribui para resolver o problema, mas nem sempre a questão está ao nosso alcance. Agora, por exemplo, estamos com a situação de uma empresária. O ex-marido está usando tornozeleira, mas está descumprindo a medida. Ele continua ameaçando e perseguindo a ex-mulher. Ele usa da influência e do dinheiro que tem para fazer isso.

CR: O que você pretende fazer agora como presidente do conselho? Quais são as ações em planejamento durante esse período de reorganização do órgão municipal?

Maria Otília: As integrantes da câmara técnica dos direitos da mulher estão pensando em enviar uma proposta de projeto para a Secretaria de Educação. Essa é uma medida de longo prazo. Mas nós avaliamos que a educação exerce um papel fundamental na mudança de comportamento. E o nosso projeto visa a criação de um currículo, não uma matéria específica, mas algo que seja interdisciplinar, para discutir gênero. Mas não é aquele termo que já foi tão banalizado. A nossa proposta é que haja, desde a creche até os últimos momentos da educação, um currículo que discuta o respeito uns aos outros, independente de gênero, cor, raça e classe social. Estamos desenvolvendo essa ideia e vamos apresentá-la à Secretaria. É esse órgão que vai trabalhar o currículo com os gestores da pasta da Educação e os professores. São esses profissionais que vão difundir o conteúdo para os alunos. Então, um dos nossos desafios é que essa proposta seja aceita. Uma outra ação é fortalecer o combate à violência, que é cotidiano, quando acompanhamos as mulheres e as encaminhamos para os outros serviços de proteção da rede. Além disso, temos as esferas da comunicação e da cultura, voltadas para a economia das mulheres, que foram as mais afetadas durante a pandemia. Queremos construir uma plataforma para que as mulheres possam vender seus produtos, artesanatos, músicas, suas formas de expressão cultural. Esses são projetos embrionários, mas que já estamos discutindo e idealizando como colocar em prática.

CR: Para quem ainda não sabe, como funciona o conselho e como as mulheres podem procurá-lo? 

Maria Otília: Nesta pandemia, estamos sem funcionamento em um local físico. Mas o conselho fica em uma sala no CRAV (Centro de Referência da Mulher Albertina Vasconcelos) e isso é algo que eu já questionei com o atual Secretário de Desenvolvimento Social, Michael Farias. O conselho precisa ter a sua visibilidade própria. Ele está muito escondido. O secretário prometeu reorganizar isso para que a gente possa ter uma sede específica viabilizada pela secretaria. Porque o espaço é do CRAV. Lá funcionam os dois serviços, o CRAV e o conselho. E temos outra dificuldade porque o conselho é um órgão que fiscaliza o CRAV, que é um equipamento social. No momento, nós também estamos sem funcionários, mas temos Monique, do CRAV, e Dayana, da Coordenação de Políticas para as Mulheres, que fazem parte do conselho e representam o governo. Elas têm conseguido bons resultados nos atendimentos.

CR: Desde a gestão passada, nós temos uma falta de representatividade feminina na Câmara Municipal de Conquista. Antes, tínhamos três vereadoras, e agora são apenas duas edis na Casa do Povo. Como a senhora acredita que isso afeta na construção de políticas públicas para as mulheres no município?

Maria Otília: Nós tivemos uma perda muito grande com o fim do mandato da vereadora Nildma Ribeiro. Ela tinha muitos projetos para as mulheres. O que acontece é que somente uma mulher sabe o que ela passa em determinadas situações. Por exemplo, a violência obstétrica. Um homem não tem noção do que é a violência obstétrica. Somente a mulher sabe a importância de uma doula na hora do parto. Um homem também não entende a necessidade de uma parada segura no transporte coletivo, que é aquela parada em um local mais próximo de onde a mulher mora quando ela pega o ônibus depois das 22h. Esse é, inclusive, um projeto que ainda está engavetado. Com uma mulher prefeita, a gente espera que o governo seja melhor e esteja mais atento a essas questões, apesar do capital político dela ser conservador. Agora, toda essa carga de projetos voltados para mulheres está com a vereadora Viviane Sampaio. Isso porque o capital político da vereadora Lúcia Rocha também é conservador, não é um capital que vem dos movimentos de lutas das mulheres. Então, ela acaba não pautando essas questões femininas e feministas. 

CR: Em maio, a Câmara Municipal realizou uma audiência pública de lançamento da campanha “Nem pense em me matar”, promovida nacionalmente pelo Levante Feminista, contra o feminicídio. Como você avalia o cenário de feminicídio a nível local, especialmente durante a pandemia da covid-19?

Maria Otília: O feminicídio é muito alarmante numa cidade como a nossa. E nós temos casos em que o assassinato de uma mulher não vai diretamente para a DEAM (Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher). Só depois o crime é considerado feminicídio e é encaminhado para a delegacia específica. Com isso, nós temos dificuldade de recolher dados sobre esse tipo de violência. Por isso, não temos números exatos. Às vezes, passam dias ou meses para que um inquérito seja concluído. E os delegados não têm formação na área para entender, logo de primeira, que se trata de feminicídio. Eles não sabem como buscar os elementos que vão ou não apontar o feminicídio. A maioria dos investigadores são homens, mas também temos agentes mulheres que não tem formação voltada para o reconhecimento do feminicídio. Recentemente, tivemos o caso da morte de uma dentista em Divisa Alegre. Inicialmente, foi divulgada como suicídio. Depois de alguns dias é que foi apontado um possível feminicídio. Queriam levar a todo custo a investigação como suicídio, mas a família conhecia muito bem o relacionamento e encampou uma luta contra isso. Então, temos essa dificuldade por causa da falta de formação dos agentes da Polícia Civil e também por conta do machismo que está envolto em toda a nossa sociedade. Às vezes, as pessoas dizem: ‘ah, mas você também vê machismo em tudo’. Tem gente que me chama de radical porque eu digo que vejo machismo até na hora do casamento. É um ato bonito, mas também é o ato onde o pai entrega a filha para o marido. É como se ele estivesse entregando uma pessoa que não sabe sobreviver sozinha para um outro cuidar. É, na verdade, um ato machista.

CR: Existem dados organizados sobre o feminicídio e a violência contra a mulher em geral referentes ao município de Vitória da Conquista? 

Maria Otília: Ainda não temos esses dados organizados. Nós estamos pensando em desenvolver um site para que nossas conselheiras pesquisadoras possam divulgar resultados de trabalhos realizados por elas e também dados sobre a violência. Mas não queremos apenas tratar das coisas ruins. Queremos ter artigos diversos sobre cultura, sobre as ações dos movimentos feministas, mas sem deixar de fora o mapa do feminicídio. Espero que até o fim do ano a gente consiga fazer a implementação total deste site.

CR: A União de Mulheres atua na cidade há mais de 35 anos. E você já foi presidente da entidade, que alcançou grandes conquistas no combate à violência contra a mulher, como a criação da DEAM e do Centro de Referência da Mulher. O que é preciso hoje para fortalecer ainda mais a rede de apoio às mulheres conquistenses?

Maria Otília: A União de Mulheres é uma entidade feminista de cunho político. Nós temos nossas bandeiras de luta que incluem a cultura, a segurança e a economia. Defendemos que as mulheres tenham autonomia nas mais diversas esferas. E oferecemos acolhimento, acompanhamos para prestar queixas, encaminhamos para atendimentos psicológicos, e também tem aquelas que só querem desabafar. Nesse caso, a gente só escuta e ficamos à disposição para quando precisarem de nós. Além disso, nós brigamos pelo Centro de Referência e pela implantação da DEAM. Mas a briga agora é por outro motivo: queremos que a DEAM funcione 24 horas. Essa é uma bandeira de muitos movimentos, inclusive do conselho. E é um dos nossos maiores sonhos. Tem gente que fala assim: ‘o ser humano está sempre insatisfeito’. Mas se não fosse a insatisfação humana, nós ainda estaríamos vivendo nas cavernas. Outro projeto é a conquista da casa abrigo. A ideia é que seja um imóvel alugado para que a gente possa, anualmente, mudar de endereço e garantir a segurança das mulheres. Dessa forma, o agressor não pode brigar com a mulher e ir procurar por ela no abrigo. Ele não vai saber qual a localização exatamente. Essa proposta é encampada pela União Brasileira de Mulheres (UBM).

CR: Como tem sido o relacionamento do conselho com o Executivo municipal agora que uma mulher ocupa o cargo de prefeita de Conquista? Existe uma diferença, até o momento, entre a gestão Sheila Lemos e a gestão Herzem Gusmão no que diz respeito às ações de enfrentamento a violência contra a mulher?

Maria Otília: Nós ainda não tivemos contato direto com a prefeita, mas pelo menos o Secretário de Desenvolvimento Social, Michael Farias, apresentou uma certa autonomia em lidar com os conselhos. Ele é uma pessoa que vem de movimentos sociais e tem uma grande sensibilidade com as nossas pautas. Então, eu creio que essa gestão seja um pouco mais aberta do que o governo Herzem. Ainda precisamos avaliar porque, como não há atividades presenciais em que a gente possa contar com a presença da prefeita, é muito difícil mensurar essa relação. Mas eu acredito que o fato dela ser uma mulher lhe dá uma sensibilidade maior, mesmo com o capital político conservador.

CR: Para finalizar a entrevista, você gostaria de dizer algo a mais?

Maria Otília: É importante dizer que o feminismo não é o oposto do machismo. É uma teoria da igualdade social e não da supremacia de um gênero sobre outro. Muitas pessoas pensam que o feminismo é sobre as mulheres poderem mandar nos homens. Mas essa é uma visão muito arcaica. Muitas vezes você escuta mulheres dizer: eu não sou feminista. Pois eu sempre digo que tenho orgulho de ser feminista. E creio que sou desde que eu era criança e presenciei um homem numa localidade onde eu vivia, num povoado, pegar uma mulher, dar um tapa nela e a arrastar pelos cabelos no meio da rua. E aí todo mundo dizia: ‘olha, se andasse direito, o marido não precisava fazer isso’. Eu deveria ter uns sete anos e aquilo me deu uma raiva. Então, eu sempre digo que sou feminista desde criança.


Caso precise de ajuda, procure os órgãos de apoio:

Centro de Referência da Mulher Albertina Vasconcelos – CRAV

Endereço: Avenida Jesiel Norberto, nº 40, bairro Candeias

Telefone: (77) 3424- 5325


Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher – DEAM

Endereço: Rua Humberto de Campos, nº 205, bairro Jurema

Telefone: (77) 3425-8349


Foto de capa: Arquivo pessoal.

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