“Abdiquei da dor e transformei tudo em uma música poÉTICA”, diz escritora Gisberta Kali Abreu

Por - 19 de novembro de 2021

Poetisa, performer e educadora social, a artista lançou o e-book 'Poéticas Visuais do Asfalto' com apoio financeiro do Programa Aldir Blanc. Segundo a autora, o livro é um "convite à perdição".

“Gostaria que fosse absolutamente desconfortável e, também, que gerasse um horror por tudo ser tão belo”. É dessa forma que Gisberta Kali Abreu, escritora e performer, deseja que as pessoas se sintam ao entrar em contato com o seu mais novo projeto. O livro, escrito por ela, se chama “Poética do Asfalto”, e a partir dele, surgiu um e-book multimídia, intitulado “Poéticas Visuais do Asfalto” e desenvolvido com apoio financeiro do Programa Aldir Blanc, do Estado da Bahia. Trata-se de um “manifesto contrassexual, através de palavras, imagens, tecnologias e corpos em movimentos radicais”. Essa é a descrição que pode ser encontrada no prefácio, escrito por Morgana Poiesis.

Além de poetisa, Gisberta é graduanda do Curso de Letras Vernáculas, na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), integrante do coletivo LGBTQIAP+ Vagalumes e educadora social na Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista (PMVC). De acordo com a escritora, o e-book surgiu a partir de “uma fome”. Ela se uniu a outros artistas para construir de forma colaborativa a obra. Fizeram parte do projeto multimídia: Morgana Poiesis, Ambrosina Daguerre, George Neri e Thiago Suiten.

Já o livro impresso foi produzido de maneira independente e a impressão aconteceu em colaboração com o editorial Bazar Bandini, enquanto a confecção artesanal foi da papelaria @olhodefolha. Gisberta faz entregas pessoalmente a quem desejar comprar a obra. A versão física foi lançada, oficialmente, em um evento presencial realizado no último domingo, 14, na Casa Memorial Régis Pacheco.

A ação foi organizada pelo Núcleo Vagalumes, grupo recentemente criado na cidade para dar visibilidade às demandas e anseios da população LGBTQIAP+. Para Gisberta, no coletivo, ela “finalmente poderia estar em um lugar não regulado totalmente pela vontade do Estado”. O lançamento de “Poética do Asfalto” aconteceu na data que marca três anos do assassinato de Raphaela Souza, amiga de Abreu e militante LGBTQIAP+ assassinada com três tiros na cabeça em Vitória da Conquista.

Homenagem à Raphaela Souza no lançamento de ‘Poética do Asfalto’, na Casa Memorial Régis Pacheco. Foto: Ambrosina Daguerre.

Em seu livro, a autora dedicou um poema à amiga, intitulado ‘Meritocracia’. Confira abaixo um trecho do texto:

“Da culpa que sempre teve Ela era inocente

e sempre fosse necessário errar o faria

na medida de sua difícil condição contraditória,

perdida nos encontros dos des-crentes…

Por que? Hoje, aqui, agora?

Por que passeias teu corpo na beira do caos […]”

Segundo Gisberta, a escrita do tributo à Raphaela foi um processo de luto. “Eu precisei abandonar o cadáver que levava na bolsa, no rosto, nos pés. Foi uma homenagem e, ao mesmo tempo, um processo terapêutico, uma cura, diante a vivência do assassinato”, explicou. Em entrevista ao Conquista Repórter, a artista falou sobre a criação de ‘Poética’ e as dificuldades que encontrou durante o desenvolvimento do projeto. Confira:

CR: Como você descreveria ‘Poética do Asfalto’ para alguém que nunca leu/assistiu ou ouviu falar do projeto?

Gisberta Kali: Poderia chamar de “convite à perdição”, no sentido mais criativo da palavra, uma vez que, ao entrar em contato com esse projeto estético-político, a pessoa terá de se afastar de suas referências tradicionais de cidade, gênero, amor, ódio e outras perspectivas mais rígidas de ver a vida-morte.

CR: Como surgiu a ideia de criar esse projeto multimídia e concorrer ao apoio do Programa Aldir Blanc?

Gisberta Kali: Foi uma fome. Não tinha pretensão de um acabamento formal visando agradar a um público específico ou a uma crítica renomada. Estávamos, eu e os artistas colaboradores, precisando (materialmente) continuar a existência. Surgiu essa brecha, esse fôlego para os artistas que é a Aldir Blanc. Eu tinha um livro pronto, escrito, então nos deixamos atravessar por outras linguagens, o audiovisual, a fotografia, a performance art e ressignificar a palavra.

CR: No texto de apresentação do ‘Poética’, escrito por Morgana Poiesis, o projeto é descrito como um manifesto contrassexual, por meio do qual as pessoas poderão esquecer padrões, crenças e expectativas. O que isso significa?

Gisberta Kali: Entendo isso como um contrato. Ao adentrar o mundo contrassexual, quem deseja estar envolvido com o manifesto se compromete a se desentender e, então, deixar de ser um autômato da sociedade, assumindo, desde então, uma atitude responsiva para com a sua ‘corpalma’ e a do outro, sempre presumindo uma ética nas relações.

CR: Para você, qual foi a maior dificuldade durante o processo de produção, edição e publicação do livro?

Gisberta Kali: Além das limitações financeiras, foi muito difícil a releitura. Eu estava cansada de mim e não queria me repetir, me duplicar de forma burra. Também não poderia entrar na ideia infantil de originalidade. Era preciso encarar as coisas com uma certa rispidez, mas sem perder a sensualidade. Percebe o peso disso tudo?

O lançamento do livro em Conquista foi organizado pelo Núcleo Vagalumes. Foto: Ambrosina Daguerre.

CR: Um dos poemas do livro, intitulado ‘Meritocracia’, foi escrito em homenagem a Raphaela Souza, a quem você descreve como ‘amiga-irmã’. Como foi o processo de criação desse texto?

Gisberta Kali: Esse processo foi um luto. Eu precisei abandonar o cadáver que levava na bolsa, no rosto, nos pés. Foi uma homenagem e, ao mesmo tempo, um processo terapêutico, uma cura, diante a vivência do assassinato. Escrevi como se faz vômito, sem trégua, entreguei o poema ao papel de uma vez só. Acredito que as palavras me habitavam há tempos, como vermes me sugando. Abdiquei da dor e transformei tudo em uma música poÉTICA.

CR: Todo os poemas, sem dúvida, são parte da poetisa Gisberta. Eles foram escritos a partir de suas experiências de vida? Podemos dizer que ‘Poética’ é uma obra autobiográfica?

Gisberta Kali: Eles nascem através de mim, mas não são limitados à minha experiência. Não se trata de uma produção autobiográfica, pois inventei todas as verdades. Poderíamos dizer “autoficcional”, muita gente vem experimentando isso. A diferença aqui é que, por eu ser uma travesti que trabalha, as pessoas tendem a duvidar sempre da potência inventiva. Eu tenho uma imaginação bastante fértil.

CR: No último domingo, 14, houve um evento de lançamento do livro organizado pelo Núcleo Vagalumes. Essa foi a primeira ação presencial do grupo, que é recente na cidade e surge com a proposta de lutar pelas pautas da comunidade LGBTQIAP+. Como você avalia a criação desse núcleo na cidade?

Gisberta Kali: Eu faço parte desse coletivo. Quando aceitei o convite para colaborar com as ações do Núcleo, me senti aliviada. Senti que finalmente poderia estar em um lugar não regulado totalmente pela vontade do Estado. Espero que a população de Vitória da Conquista entenda da mesma forma e se sinta parte de tudo que estamos propondo.

Foto de capa: Ambrosina Daguerre

MATÉRIA ATUALIZADA EM 20/11/2021, ÀS 11H45:

Após a divulgação da entrevista, a escritora esclareceu que o livro físico, ‘Poética do Asfalto’, e o e-book multimídia, ‘Poéticas Visuais do Asfalto’, são obras que foram publicadas de formas diferentes, apesar de estarem interligadas. A versão física foi produzida de maneira independente e a impressão aconteceu em colaboração com o editorial Bazar Bandini, enquanto a confecção artesanal foi da papelaria @olhodefolha. Gisberta faz entregas pessoalmente a quem desejar comprar a obra. Já o e-book foi desenvolvido com apoio financeiro do Programa Aldir Blanc, do Estado da Bahia e pode ser acessado de forma online aqui. As informações foram acrescentadas ao texto.

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