Racismo religioso: povo de santo resiste a agressões verbais, físicas e institucionais em Conquista
Por Victória Lôbo - 29 de novembro de 2021
Assunto foi trazido à tona por representantes das comunidades de terreiro em sessão especial do Dia da Consciência Negra, promovida pela Câmara de Vereadores. A imunidade tributária é um dos direitos pelos quais o povo de santo tem lutado na cidade.
“Se você não pode nos tolerar, pelo menos nos respeite”. O apelo é do pai Ruddy de Oxum, e foi feito na abertura da sessão especial do Dia da Consciência Negra, realizada na última quarta-feira, 24, na Câmara Municipal de Vitória da Conquista. Entretanto, o pedido não é novo. A falta de respeito à cultura e à expressão dos povos de terreiro é um problema historicamente estrutural não apenas na terceira maior cidade da Bahia, mas em todo o país.
A cultura não-branca vem sendo apagada e criminalizada durante os 521 anos de colonização do Brasil, com o genocídio dos povos originários e, depois, dos africanos trazidos pelo tráfico negreiro para o trabalho escravo. Só no primeiro semestre de 2020, as denúncias de racismo religioso feitas à Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), pelo Disque 100, aumentaram em 41,2%, em comparação ao mesmo período de 2019.
Na Bahia, por outro lado, as denúncias diminuíram no ano passado, durante a pandemia da covid-19, segundo a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi). Em 2019, foram registrados 49 casos, enquanto que, em 2020, a Sepromi contabilizou 29. Mas como várias vítimas de racismo religioso não reportam o crime, os números oficiais nem sempre condizem com a realidade.
Em Vitória da Conquista, alguns casos já repercutiram na mídia local, através de denúncias feitas na Tribuna Livre da Câmara de Vereadores, no Ministério Público e nas ações do Dia da Luta Contra a Intolerância Religiosa, 21 de janeiro. Um caso recente esteve relacionado a um representante de religião cristã que utilizava a caixa de som de uma das lojas do centro do município para cometer o crime de racismo religioso, como é considerado pelo Artigo 20 da Lei 7.716/1989, o ato de “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.
No dia 12 de maio deste ano, a coordenadora da Rede Caminho dos Búzios, mãe Graça, desabafou na Tribuna Livre do Legislativo conquistense. “Somos agredidos verbalmente, colocam fogo nos panos brancos estendidos pela cidade. Pessoas agridem verbalmente os orixás”, disse. Na ocasião, ela ainda relembrou os ataques ao ex-prefeito e candidato ao Executivo municipal na eleição de 2020, Zé Raimundo (PT), que teve fotos pessoais com o povo de santo criticadas e divulgadas por apoiadores do seu adversário e ex-prefeito eleito, Herzem Gusmão (MDB).
Racismo religioso institucionalizado
“Você veio fechar o meu terreiro?”. “É do governo? Se for, nem adianta vir aqui”. Esses foram alguns dos questionamentos que a jornalista Thaís Pimenta recebeu quando foi visitar terreiros para a realização de entrevistas e fotografias para o “Egbé – Catálogo Fotográfico dos Templos Afro-Brasileiros de Vitória da Conquista”. Receio, desconfiança, medo. Por que os povos de santo convivem com esses sentimentos em um país laico?
“Acho que esse receio e essa desconfiança já mostram o quanto é recorrente para os povos de santo serem vítimas de preconceito. São tantos ataques que a primeira reação é já se defender”, afirmou Thaís. Para ela, o catálogo, que será lançado no dia 10 de dezembro, “dá visibilidade a esse patrimônio cultural que muitas vezes é invisibilizado com o discurso de que o nosso município é a ‘Suíça baiana’, que é uma cidade evangélica, espírita e católica”.
Segundo Paloma de Oxóssi, uma das formas mais evidentes de racismo religioso em Vitória da Conquista é o institucional, devido ao fato de muitos terreiros pagarem o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU). A mãe de santo ainda não paga o tributo, já que o Bem Querer, onde o seu terreiro está localizado, não é considerado zona urbana.
Mas os 82 terreiros integrantes da Rede Beneficente, Educacional e Religiosa Caminho dos Búzios, coordenada pela mãe Graça, pagam o IPTU. A rede foi criada em 2016 e, desde então, luta pela imunidade tributária, concedida a todos os templos religiosos pela Constituição Federal de 1988, que estabelece em seu Artigo 150 que é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir impostos sobre templos de qualquer culto.
Nossa reportagem solicitou esclarecimentos da Prefeitura Municipal acerca da cobrança do IPTU feita a terreiros de Vitória da Conquista. Em nota enviada ao Conquista Repórter na última quinta-feira, 25, a Secretaria Municipal de Finanças (Sefin) afirmou que o Código Tributário Municipal (Lei nº 1.259/2004) garante a isenção do IPTU a templos de qualquer culto, “desde que a organização religiosa seja a real proprietária do imóvel, comprovado por meio da apresentação da Certidão de Inteiro Teor de Registro do Imóvel ou a Certidão de Ônus do imóvel atualizada”.
Com isso, de acordo com a Sefin, imóveis alugados, por exemplo, “não fazem jus à isenção do IPTU, tendo em vista que a relação de cobrança do tributo ocorre entre o proprietário do imóvel e o Município, e não com o templo religioso que, porventura, esteja funcionando em propriedade de terceiros”. A nota diz ainda que “as instituições religiosas precisam estar devidamente inscritas no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica, possuir estatuto, ata de constituição e requerer formalmente ao Município a imunidade tributária, que será analisada pelo Fisco Municipal.”
Mãe Graça, no entanto, contou que o movimento liderado pela Rede Caminho dos Búzios teve dois requerimentos negados pela Prefeitura Municipal. Diante desse impasse, os terreiros devem acionar a justiça para garantir o direito da imunidade tributária. A Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE-BA) oferece orientação jurídica para representantes dos povos de santo que estão em busca da isenção. A cartilha “Direitos das Religiões Afro-Brasileiras”, desenvolvida pelo órgão, traz instruções sobre o processo. Veja a seguir:
Resistência e representatividade
“Não é só falta de conhecimento, é um discurso de ódio também, porque hoje nós temos a mídia que está aí o tempo todo falando [sobre o assunto], nós temos livros, nós temos leis como o Estatuto da Igualdade Racial e nós temos a Defensoria de Estado e a União dizendo que é crime”, disse mãe Rosa.
Segundo Ricardo de Oxóssi, “quem é do Candomblé e diz que nunca sofreu o racismo religioso está completamente equivocado. Se não sentiu diretamente, algum dos nossos sofreu. Então nós também sofremos”. Ele, mãe Paloma e mãe Rosa d’Oxum concordam que o ódio é o pivô para o racismo religioso. As histórias de vida dos três se entrelaçam por dois aspectos: a resistência e a representatividade.
Mãe Paloma de Oxóssi
Mãe paloma tem 37 anos e, apesar de ter nascido em Vitória da Conquista, cresceu em Nazaré das Farinhas, onde se encontrou verdadeiramente com a religião umbandista, com o apoio do seu padrinho de santo. Suas avós também eram de santo – uma cigana e a outra indígena. Dessa forma, apesar de sempre fugir da vocação, seu santo sempre a lembrava de quem era, até mesmo quando trabalhava como cabeleireira e sentia as angústias dos clientes.
Paloma é uma mulher trans e tem um filho de sete anos, Enzo, que diz ser a razão de sua vida. Além disso, é casada com Geraldo há 17 anos, mas o relacionamento só foi formalizado no dia 12 deste mês, com o casamento LGBTQIAP+ coletivo, promovido pela Defensoria Pública Estadual.
Mesmo sabendo que era mulher desde muito cedo, a mãe de santo só se assumiu trans para os pais quando tinha 16 anos. Paloma conta que, mesmo aceita pela família, sofreu muito preconceito por ser LGBTQIAP+ e umbandista, principalmente por parentes mais distantes.
Pai Ricardo de Oxóssi
Pai Ricardo tem 35 anos e nasceu em Salvador, mas cresceu como filho adotivo de uma família evangélica de Vitória da Conquista. Porém, aos 13 anos, começou a desenvolver fenômenos espirituais ligados à mediunidade. Foi quando recebeu uma entidade na sala de aula que contou aos pais que não iria mais à igreja evangélica. Ricardo decidiu procurar a sua religião e, assim, encontrou o Candomblé.
Daí em diante, começou a sua trajetória entre o povo de santo. Segundo ele, não há como desassociar a sua história de vida da religião, visto que ambas estão intrinsecamente interligadas. De acordo com o pai de santo, “muitas vezes nós respeitamos muito mais nossa família religiosa do que nossa família biológica”.
Mãe Rosa d’Oxum
Militante quilombola e LGBTQIAP+, mãe Rosa d’Oxum é conquistense e tem muita ligação com Salvador. Começou sua trajetória na Umbanda e há cerca de 20 anos se iniciou no Candomblé, na nação Ketu. “Eu não tenho consciência, tenho resistência”, explicou Rosa.
Ela contou que já sofreu crime de racismo religioso várias vezes, inclusive de pastores neopentecostais. Um deles já a agrediu verbalmente duas vezes. “A gente tem que deixar isso muito claro: que não são todos os evangélicos, são pastores neopentecostais, eles são racistas, são homofóbicos, preconceituosos e invejosos”, concluiu.
Foto de Capa: acervo pessoal de mãe Paloma
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