Quando eu me declaro poeta, ocupo um lugar que não foi reservado a mim, afirma Fernanda de Moraes
Por Karina Costa - 30 de agosto de 2024
Primeiro livro da escritora, intitulado "Quintal de Casa: Memórias", será lançado na próxima sexta-feira, 6, no Centro de Cultura Camillo de Jesus Lima. Obra é uma homenagem póstuma ao seu irmão mais novo.

Nascida em Ilhéus, no Sul da Bahia, Fernanda Silva de Moraes trabalhou por mais de 20 anos na área contábil. Graduada em Economia pela Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc), passou grande parte de sua vida profissional entre as quatro paredes de escritórios. Na infância e adolescência, seu contato com a leitura aconteceu por meio da biblioteca municipal ou de outros espaços onde acervos literários estavam disponíveis de forma gratuita, como os centros espíritas que frequentava.
“Sou de origem pobre, então não tinha muitos livros em casa. Tive o contato com a literatura por meio de lugares que frequentava. Isso durou até os 18 anos, quando precisei enfrentar a realidade do trabalho”, conta a escritora e poeta. Mas apesar da dificuldade de acesso às obras literárias, o gosto pela leitura sempre fez parte de sua personalidade. “Comecei a ler com cinco anos”, destaca.
Por mais de dez anos a necessidade de trabalhar por sobrevivência a afastou do mundo dos livros. Foi em 2018, após um divórcio, que ela se deu conta de que não queria ser responsável pelo enriquecimento de uma outra pessoa por meio da sua mão de obra. Essas exatas palavras foram ditas por Fernanda durante nossa entrevista. Segundo a ilheense, ela nunca mais foi a mesma depois dessa realização.
“Passei por uma crise a partir desse período e voltei para as leituras. O livro que encontrei foi “Um Teto Todo Seu”, da Virginia Wolf. Essa obra mudou algo em mim. É um ensaio sobre mulheres que escreviam literatura no século 20. E ela fala justamente sobre como as mulheres sempre foram privadas de ocupar esses espaços”, explica. Foi essa leitura e várias outras que a inspiraram a mudar de carreira.
“Em 2022, eu ainda estava ouvindo a voz da Virginia Wolf e o que ela me dizia era: você tem o direito de exercer a sua própria existência do modo como achar que deve”, relata Fernanda. Inspirada pelas palavras da escritora britânica, a baiana mudou de profissão e também de cidade. Há dois anos deixou o Sul da Bahia para morar em Vitória da Conquista, juntamente com o filho Emanuel.
Hoje, aos 40 anos, é mestranda em Letras pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). Seu objeto de estudo é o impacto do racismo na preservação do acervo literário de Carolina Maria de Jesus. Ela também é criadora de conteúdo literário nas redes sociais, onde compartilha resenhas de livros, dicas, e exalta especialmente a literatura de mulheres negras.
Na próxima sexta-feira, 6 de setembro, Fernanda irá lançar o seu primeiro livro, chamado “Quintal de Casa: Memórias”, publicado pela editora Xará. A obra poética é uma homenagem ao seu irmão, falecido aos 24 anos. Em entrevista ao Conquista Repórter, a escritora falou sobre o que as pessoas podem esperar da sua obra de estreia, como acontece a sua conexão com Carolina Maria de Jesus e a importância de apresentar às crianças a literatura de mulheres negras. Confira a seguir:
CR: Seu livro de estreia “Quintal de Casa: Memórias” será lançado nos próximos dias, em um evento realizado pelo Coletivo de Escritores Conquistenses. Na divulgação, a obra é definida como “um livro para reencontrar o quintal da infância”. O que você espera que as pessoas reencontrem ao realizar essa leitura? E você, reencontrou algo importante ao escrevê-lo?
Fernanda de Moraes: Esse livro é totalmente dedicado ao meu irmão. Ele foi assassinado quando tinha 24 anos. E foi apenas muito recentemente que eu elaborei o luto. Passei pela situação da perda, mas não vivi o luto na época. Então, essas coisas ficaram reverberando em mim desde a infância. No processo terapêutico, eu comecei a perceber o quanto a perda dele mexeu comigo e também me dei conta de que ele foi vítima de uma estrutura racista. Ele morreu porque era um menino pobre e preto que andava de bicicleta. Para mim, que falo tanto sobre essa questão racial, me dar conta das circunstâncias as quais meu irmão foi submetido, me fez lembrar dos momentos sensíveis no quintal da minha infância. Por anos eu morei com meu irmão e minha mãe na casa de minha vó. Lá tinha um quintal muito grande onde a gente passava as tardes. Naquele lugar a gente criava, brincava, comia frutas. E esse quintal está muito atrelado a minha vivência com o meu irmão porque ele era praticamente a única criança com quem eu brincava. Ele era quatro anos mais novo do que eu, então eu brincava e cuidava dele. Quando as pessoas acessarem esse livro, vão encontrar ali uma Fernanda que é da infância, mas também que já está adulta e experimenta uma relação com esse quintal. É um livro para ler em um fôlego só, de repente à tarde, enquanto você toma um chá. Espero que as pessoas absorvam que a sensibilidade não tem nome, idade ou um modo de ser descrita. Além disso, gostaria de encantá-las com a minha leitura.

CR: Carolina Maria de Jesus é uma referência na sua trajetória. Você dedicou a sua dissertação de mestrado ao trabalho dessa mulher negra que, apesar de todos os entraves impostos pelo machismo e pelo racismo estrutural, teve a sua obra literária reconhecida pelo mundo. Você se lembra de quando teve contato pela primeira vez com a literatura da escritora mineira e o que te conectou imediatamente com os seus escritos?
Fernanda de Moraes: Meu primeiro contato com Carolina foi em 2020. Tinha pouco tempo que eu havia voltado para o mundo dos livros. Me deparei primeiro com Conceição Evaristo e, em seguida, com Carolina. Nessa época, fui apresentada também a Maria Firmina dos Reis e diversas outras autoras negras latino-americanas. Me dei conta de que eu nunca tinha ouvido falar de escritoras negras no Brasil. Percebi também que eu não sabia que Machado de Assis era negro. Isso porque ele foi embranquecido durante toda a sua trajetória literária, mesmo pós morte. E a gente não se dá conta disso porque era muito comum que só tivéssemos acesso a escritores e escritoras brancas. Parece que é uma coisa óbvia, mas não é. Quando eu encontro Carolina, me deparo com aquela escrita totalmente desvinculada de uma normativa gramatical acadêmica e vejo nela uma sensibilidade que a gente nem sempre encontra na norma. Fiquei estarrecida com aquilo. Então, no ano passado, quando me voltei para a pesquisa, eu queria falar sobre escritoras negras. Meu projeto ainda não estava bem estruturado, mas eu tive uma professora que viu em mim algo que eu não tinha conseguido encontrar. Nós vimos uma reportagem sobre a não preservação e conservação do acervo literário de Carolina Maria de Jesus, que está na cidade onde ela nasceu, Sacramento, em Minas Gerais. Esse tema acabou virando meu objeto de estudo. Mas agora, depois da minha qualificação no mestrado, descobrimos que eu não estou falando sobre o acervo de Carolina, mas sim sobre os caminhos dela a partir de uma teoria chamada corpomídia. Essa teoria diz que você interage com o meio e o meio interage com você, e essas trocas tornam você mídia de si mesmo. Então, enquanto eu estou na rede social e falo sobre isso, eu sou mídia de mim mesma, sendo corpomídia pelo mundo. E enquanto eu estou nessa luta para escrever para a qualificação, brota um livro, que é justamente o resultado do meu corpo em movimento e de mim sendo totalmente influenciada por Carolina. Ela veio antes de mim e, querendo ou não, está abrindo espaço para que pessoas como eu também possam ocupar um lugar de escrita, literatura e poesia. Em resumo, para mim, Carolina é minha mãe espiritual e de escrita, é a pessoa que está me guiando nesse momento. Embora eu não seja religiosa, acredito fortemente nessa questão da ancestralidade.
CR: O seu livro de estreia é uma publicação da Xará, uma editora independente. Quais foram os desafios que você, enquanto escritora independente no interior da Bahia, enfrentou até encontrar uma maneira de publicar a sua obra?
Fernanda de Moraes: A Letícia, que é a revisora da Xará, começou a me seguir nas redes sociais por conta de uma parceria que eu tenho com uma assessoria e consultoria para escritores. Tempos depois, apareceu para mim, no Instagram, uma publicidade da editora que, naquele momento, estava aceitando escritos originais. Então, eu vi qual era o prazo de entrega, quais eram os requisitos para participar e percebi que aquilo era para mim. Eu não sou uma pessoa de muitos recursos, não passo dificuldade, mas publicar um livro exige muito dinheiro e a Xará não exigia isso de mim. Era um projeto de duas mulheres encontrando uma escritora totalmente “verde”, porque é assim que eu me sinto. Foi como uma luva encontrar uma mão. Elas apostaram em mim e o nosso encontro foi bem orgânico.
CR: Numa rede social, você afirmou que “consciência negra é também compreender que o corpo negro é parte da história fazendo a diferença em todos os lugares que ocupa”. Da sua maneira, você vem fazendo a diferença na cena literária baiana e conquistense enquanto uma escritora negra que se posiciona politicamente. Como você busca tornar a sua poesia ou a sua literatura uma ferramenta de combate às diversas formas de opressão?
Fernanda de Moraes: Há um tempo, eu não falava para ninguém que tinha um perfil literário, como se isso não fosse importante ou relevante. É como se eu tivesse vergonha de dizer. Mas então as pessoas começaram a falar que a minha página era interessante e que eu trazia debates importantes. Depois do meu encontro com a teoria corpomídia, eu me dei conta que o que eu faço é completamente o contrário daquilo que a sociedade espera que eu faça. O algoritmo não entrega o meu conteúdo. É o racismo. O algoritmo entrega coisas feitas por pessoas brancas. Existem estudos que já mostram isso. Se você pesquisar no Pinterest a palavra “família”, vai aparecer a imagem de pessoas brancas. Então, o meu corpo é vinculado a duas imagens que são muito trabalhadas pela Lélia González, a da mulata, que tem a ver com a objetificação do corpo, e a da mulher cuidadora, que é sempre negra e trabalha em casa de família e sabe cozinhar. São esses dois lugares que a sociedade me reserva. Quando eu falo de livros, estou ocupando um lugar que não foi reservado a mim. Quando eu me torno uma acadêmica, estudante no mestrado, estou ocupando um lugar que não foi reservado a mim. Quando eu escrevo um livro de poesias e me declaro poeta e escritora, esse lugar também não foi reservado a mim. Então, publicar um livro e estar na rede social, mesmo sabendo que ela não me reconhece enquanto uma produtora de conteúdo de qualidade, significa que eu continuo existindo e, sobretudo, reexistindo. Esse é o meu corpo falando disso todos os dias até que seja entendido. Era essa consciência negra sobre a qual eu estava falando naquele post e que eu vivencio todos os dias quando me movimento de alguma forma.
CR: Você participa ativamente de ações locais que estimulam a literatura na infância e na adolescência, especialmente o contato com obras de mulheres negras. Um exemplo disso é o seu envolvimento no Clube de Leitura Sankofa, da Biblioteca Comunitária Miro Cairo. Qual a importância de apresentar às meninas negras referências artístico-literárias nas quais elas possam se ver refletidas?
Fernanda de Moraes: Recentemente eu vi uma postagem bem simples, mas que resume a minha resposta. A primeira foto mostrava uma mulher mais velha pisando no mar. Depois, numa segunda imagem, a gente via uma mulher mais jovem com crianças pequenas também pisando no mar. E na legenda, a pessoa escreveu o seguinte: “a minha mãe conheceu o mar com 70 anos. Os meus sobrinhos de 15 anos conheceram o cinema ano passado. Os meus sobrinhos de 3 e 4 anos já conhecem o mar e já conhecem o cinema”. Para finalizar, ela disse: “a distância do tempo está ficando cada vez mais curta”. O que eu estou querendo dizer é: o que a gente tem feito na Biblioteca Miro Cairo e que Juliana tem feito na Biblioteca Donaraça é um trabalho de formiguinha numa tentativa de encurtar essa distância. Quando nós estávamos crescendo, Lima Barreto, Lélia González e tantos outros já estavam no mundo, mas a gente não tinha noção de que, enquanto pessoas pretas, poderíamos também alcançar esses lugares. Quando eu falo para meninas tão pequenas que existe uma mulher negra escrevendo e com livros publicados, eu estou fazendo com elas uma ação que não fizeram comigo. Descobri há pouco tempo o verbo “esperançar”. É exatamente isso que a gente faz quando apresentamos a literatura negra para as crianças. Estamos conjugando o verbo “esperançar”. É uma coisa que aconteceu com o cabelo, por exemplo. Eu me descobri negra com quase 30 anos. E as crianças hoje já nascem dizendo que o cabelo é lindo, que a pele é linda. Já nascem sem permitir que as pessoas sejam capacitistas, racistas, machistas.
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