Guilhotina Guinle: “Minha drag queen só corta as cabeças da intolerância”

Por - 26 de setembro de 2025

A drag conquistense lançou seu álbum de estreia, "Jogo da Bixa", em agosto deste ano. O disco mistura pop, axé, pagode, arrocha e sertanejo em uma narrativa de memórias e afeto.

Andressa Kallyl

Guilherme Nogueira nasceu e cresceu em Vitória da Conquista, no bairro São Vicente. Aos 19 anos, deixou a cidade e foi para Goiânia, em Goiás, onde iniciou sua carreira artística como Guilhotina Guinle, drag queen que lançou, em agosto deste ano, o seu primeiro álbum “Jogo da Bixa”.

Foi ainda na infância que surgiu o seu apreço pela música. Cantoras como Britney Spears, Lady Gaga e Ivete Sangalo marcaram sua vida e são referências para o seu trabalho, que mistura ritmos como pop, axé, pagode baiano e sertanejo. Mais tarde, já adulto, encontrou em Glória Groove uma inspiração.

“A Glória foi a primeira drag cantora que eu vi fazendo música de qualidade, com um corpo fora do padrão, mais parecido com o meu”, conta. A partir dessa inspiração, nasceu Guilhotina Guinle, em 2018. “Eu cantava desde criança, mas a Guilhotina foi o rosto que eu quis dar para minha voz”, afirma.

Depois de passar por Vitória da Conquista e Goiânia, Guilhotina começou a trilhar o seu caminho em São Paulo, onde mora atualmente. As vivências em todas as cidades ajudaram a dar forma ao seu primeiro álbum. Composto por 10 faixas, “Jogo da Bixa” conta a história do artista, da infância à vida adulta.

Quem escuta a primeira música do álbum já se depara com um som carregado de memórias da sua infância. Na introdução, é a voz de sua tina Lene que diz “entrou no pé do pinto, saiu no pé do pato”. Era com essa frase que ela terminava as histórias que contava para Guilherme quando era criança.

Apesar dos momentos difíceis que passou na terra natal, especialmente durante a descoberta da sexualidade, o artista considera Vitória da Conquista um lugar de raízes e afetos. “A ideia do projeto é resgatar minhas memórias baianas. É sobre como o Guilherme se tornou a Guilhotina”, explica.

Em entrevista ao Conquista Repórter, ele compartilhou sua trajetória, os bastidores da criação do novo álbum e as conexões profundas que mantém com a arte e a expressão drag. Confira a seguir: 

CR: “Jogo da Bixa” começa com a voz da sua tia Lene, uma figura marcante da sua infância. Como essa memória afetiva moldou sua relação com a arte e de que forma ela influencia a estética e a narrativa do álbum?

Guilhotina Guinle: Tia Lene era irmã da minha mãe e morreu muito jovem, aos 48 anos. Eu a considerava uma segunda mãe. Ela não tinha filhos, era uma mulher solteira e livre, muito inspiradora para mim. Na época, minha família frequentava muito a igreja e, apesar dela ser amada e querida por todos, era considerada transgressora. E eu pensava: “será que isso é bom? Será que é certo?”. Mas, independente disso, ela era a nossa segunda mãe e cuidava da gente. Tia Lene gostava de contar histórias e ela tinha um gravador que usava para registrar essas histórias. Eu tinha uma dessas gravações guardadas na casa dos meus pais, em Conquista. Quando comecei o processo do álbum e a escrever a primeira música, eu tinha anotado essa frase: “entrou no pé do pinto e saiu no pé do pato, nosso senhor mandou dizer que Guilherme contasse quatro”. Era algo que a minha tia sempre utilizava para terminar as histórias. É um ditado, você termina a sua história e passa a bola para outra pessoa. É uma memória muito gostosa. Então, eu coloquei a frase na letra de “Jogo da Bixa” e pensei: “agora quero colocar isso em uma intro, eu quero descobrir a voz da minha tia”. Eu pedi ao meu pai para procurar essa fita e mandar para São Paulo. Depois, eu comprei um tocador para ouvir a voz dela e chorei muito, porque essa frase é só o finalzinho da história, mas eu ouvi ela contando a história de novo para mim. Isso moldou muito o Guilherme de hoje, o caráter, a vontade pela arte. Eu gosto de gravar, de ouvir minha voz, a Guilhotina também, e eu desenhei todo o álbum a partir disso. Na introdução, eu começo com ela passando a bola para mim, Guilherme, e quando termino de cantar a primeira música, eu passo a bola para Guilhotina. Eu falo: “que a Tina contasse quatro”. Eu falo a mesma frase que ela falava e passo a vez para a Guilhotina, porque é ela quem vai contar as histórias daqui para frente.

CR: Em 2018, você criou a Guilhotina Guinle. Qual foi o seu primeiro contato com a arte drag e quando você percebeu que precisava se expressar por meio dela?

Guilhotina Guinle: Acredito que muitas das drags que conhecemos hoje foram influenciadas por RuPaul. A popularização da drag no mainstream foi importante para que muita gente se interessasse pela arte, porque aqui no Brasil, especificamente, a gente só tinha drag em lugares muito nichados, como baladas LGBTQIAPN+, e às vezes na televisão, como no Programa Silvio Santos, em algo mais cômico. A popularização com RuPaul me influenciou muito. Mas, até então, era só um interesse por assistir, por gostar da cultura. Depois vieram as drags cantoras, que me tocaram mais, porque sempre cantei, sempre quis movimentar a minha carreira na música e trabalhar com isso, mas o Guilherme não fazia sentido para mim ainda. Na música, as minhas referências eram as grandes divas pops, e quando surge a Glória Groove, ela é essencial no meu processo. Eu comecei a me montar por causa dela. Eu sempre falo que ela foi a primeira drag cantora que eu vi fazendo música de qualidade, com um corpo fora do padrão, um corpo mais gordinho, mais parecido com o meu. Eu me identifiquei com isso e com a história dela, que é muito parecida com a minha, por ter vindo da igreja. A partir disso, fui entendendo que a arte drag poderia ser esse artifício para eu conseguir executar a minha música. Ou seja, a música veio primeiro, a drag depois, mas ela é essencial para fazer a música acontecer, para me dar essa vontade de estar no palco, esse prazer de me ver no espelho. Eu acho bonito, grandioso, poderoso. Traz mais sentido para o que eu quero cantar. 

CR: O seu álbum de estreia, “Jogo da Bixa”, é definido como um manifesto pela liberdade e pela valorização da diversidade. Como surgiu a ideia desse projeto? E como ele reflete as suas vivências como artista drag vinda do interior da Bahia?

Guilhotina Guinle: A ideia surgiu a partir da minha vontade de fazer um álbum visual da perspectiva de uma gay gorda. Eu entendi que queria falar sobre a liberdade do corpo. O projeto é composto por um álbum visual e um filme, que vai ser lançado no final do ano. Já lancei quatro clipes, ainda vem mais três e por último o filme, que conta a história completa. No começo era um roteiro mais literal da minha história, começava em Conquista, depois eu ia para Goiânia, contando sobre os meus amores. A primeira música que eu compus foi “Jogo da Bixa”, e quando estava ouvindo, pensei: “caramba, velho, essa música é o título do álbum”, porque é a que tem mais impacto entre todas. A partir disso, surgiu a ideia do “Jogo da Bixa” ser um jogo de tabuleiro com referência de Jumanji, um filme que eu sempre gostei de assistir, era o meu favorito na infância. Foi assim que o projeto virou o “Jogo da Bixa”, que tem uma sonoridade baiana. O que eu queria que comandasse o álbum era a guitarra baiana e a percussão. Eu chamo de pop baiano porque é, na verdade, uma mistura. Tem um pouco de arrocha, sertanejo, mas, de alguma forma, tudo te leva para a Bahia. A música “Duas Doses de Gin” não tem percussão, mas tem a guitarra, que faz com que você se sinta na praia. O projeto tem essa ideia de resgatar minhas memórias baianas, com essas primeiras referências, porque ele acabou se tornando sobre a minha infância, adolescência, o começo da minha história. É sobre como o Guilherme se tornou a Guilhotina. E é ela quem comanda essa história dentro do álbum, dividida em três fases: o Guilherme criança, o Guilherme jovem e a Guilhotina, que é a minha versão adulta.

CR: As faixas do seu novo trabalho celebram também os lugares que moldaram sua trajetória: Bahia, Goiânia e São Paulo. Como você observa a forma como a arte drag é recebida em cada um desses cantos do Brasil?

Guilhotina Guinle: Em São Paulo, a arte drag é recebida um pouco melhor, porque a gente tem mais espaços para se apresentar, mais possibilidades. Em Goiânia, existe uma cena, mas muito limitada. Já em Conquista, essa cena praticamente não existe. Existem drags, mas eu não conheço um movimento que faça acontecer projetos. Eu adoro ser recebida em Conquista porque sou uma novidade, com minhas maquiagens, looks e músicas lançadas. E também porque posso voltar aos lugares que eu sempre fui e onde conheci muita gente. Além disso, gosto muito de conhecer as pessoas, as histórias, adoro quando falam comigo, me abraçam, eu me sinto muito bem. Em Goiânia já é uma outra relação, mais focada nos meus amigos. É uma cidade maior com poucas pessoas que eu tenho acesso. Acho que isso foi um fator limitador quando eu estava lá, apesar da Guilhotina ter nascido em Goiânia. Eu falei: “pô, minha drag não vai sair do lugar se eu continuar aqui”. Minha carreira no audiovisual precisava andar, eu precisava ter outras possibilidades de trabalho. Mas eu adoro voltar para Goiânia e agora, com um projeto lançado, eu consigo ir numa casa, fazer um show, uma performance. 

CR: Ao longo da sua trajetória, quais foram e são as principais dificuldades que você encontra para escoar a sua arte, tanto em São Paulo quanto em Vitória da Conquista?

Guilhotina Guinle: A maior dificuldade é o dinheiro, porque é muito caro ser drag. Por exemplo, eu trabalho com audiovisual hoje para pagar a Guilhotina, porque ela ainda não se paga, o cachê do show mal paga a maquiagem que eu faço, é um valor muito baixo. Os espaços e as oportunidades de cantar são outras dificuldades. Em Conquista, por exemplo, não tem espaços, então é difícil. Eu fui me apresentar no Festival Suíça Bahiana e, durante os dias em que estaria na cidade, a gente tentou fechar alguns shows, mas não conseguimos pela falta de espaço. Então, às vezes você faz um show em um lugar ou outro, mas não tem espaço de fato para as drags. Em São Paulo tem, mas a dificuldade é acessar, fazer os contatos certos. Tem que estar na rua, que é o movimento que eu tenho feito, de estar me montando, falando com outros drags. Porque assim as pessoas te veem, você fala do seu álbum, faz com que a pessoa conheça seu trabalho, de repente faz amizade com outra drag famosa. Existe essa possibilidade em São Paulo, mas você tem que construir essas relações para conseguir estar nos lugares.

CR: Para finalizar, quais são as perspectivas na música e principais novidades pós-lançamento de “Jogo da Bixa”?

Guilhotina Guinle: Depois do “Jogo da Bixa”, eu quero emendar um álbum de remixes e fazer um projeto de arrocha. Estou doida para fazer isso. Quero muito estar nas mídias, ir para programas de entrevista e fechar shows. Quero fechar shows em Conquista e me articular para levar a turnê do álbum, que eu iniciei aqui em São Paulo na semana passada, para o Brasil todo. Minha vontade é cantar para todo mundo. Mas os próximos projetos mais imediatos são os videoclipes desse álbum novo e o filme. Ainda tem muita coisa para sair nas plataformas, principalmente do “Jogo da Bixa”, que está só começando.

*Maria Eduarda Leite é estudante do 8º semestre do curso de Jornalismo da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) e estagiária do Conquista Repórter.

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