Casal diz ter sido vítima de racismo em ação truculenta da Guarda Municipal de Conquista
Por Afonso Ribas - 15 de julho de 2021
Prefeitura disse em nota que “não houve excessos, nem abusos”, mas relato de uma das vítimas contradiz versão oficial sobre o caso: “foi o maior terror”, contou a servidora Joane Sirpa
“Socorro, gente! Me ajuda aqui, gente! Esses racistas! Me solta!”, gritou a servidora pública Joane Sirpa enquanto tentava proteger o marido, Edmilson Lima, artesão, de uma abordagem truculenta da Guarda Municipal de Vitória da Conquista (GM), na Praça 9 de Novembro, Centro da cidade. Segurando-o com os braços, Joane buscava impedir que o esposo fosse imobilizado e algemado pelos agentes de segurança. Mas não adiantou.
Um dos guardas puxou Edmilson pelo braço e o jogou contra o chão. Joane foi junto. Em questão de instantes, foi afastada pelos agentes, que também a imobilizaram, enquanto ela pedia para que a soltassem. “Você não tem direito de fazer isso comigo, eu sou funcionária pública igual a você. Gente… meu marido, gente! Ele não fez nada”, gritou mais uma vez. Foi como se fingissem não ouvir seu apelo.
Tudo aconteceu em plena luz do dia, na tarde da última quarta-feira, 14, diante de câmeras de celulares que registraram o momento. As filmagens viralizaram nas redes sociais horas depois, sobretudo no WhatsApp. O sentimento de muitos que viram a cena foi de revolta e indignação devido a forma como o casal, composto por um homem e uma mulher negra, foi tratado pela GM.
Das pessoas que passavam pela Praça 9 de Novembro no momento em que a situação ocorreu, poucas se aproximaram e tentaram intervir. “Tira o joelho, tira o joelho, tira o joelho”, pediram algumas delas repetidamente para um agente que estava com o joelho próximo do pescoço de Edmilson, com temor de que acontecesse com ele o mesmo que, em maio de 2020, levou à morte de George Floyd, em Minnesota, nos Estados Unidos.
Segundo a Prefeitura Municipal, “não houve excessos, nem abusos”, pois a abordagem teria sido “feita no padrão”. Mas, para a historiadora e ativista Keu Souza, que publicou o vídeo em seu perfil no Instagram, foi uma ação de cunho racista. O mesmo foi dito por vários outros internautas nas redes.
Diferentes versões
De acordo com o posicionamento oficial da GM, emitido por meio de nota, a Guarda foi chamada por conta de uma briga que estaria ocorrendo no local, “com ameaça”. O documento afirma que os agentes teriam tentado abordar Edmilson pacificamente para resolver a situação, mas foram desacatados com “palavras de baixo calão”. Por isso, foi dada voz de prisão, a qual ele teria resistido, o que não fica evidente no vídeo que viralizou.
Porém, a nota da GM não esclarece o que motivou a discussão e se ela teria de fato ocorrido entre Edmilson e Joane, como foi informado por alguns blogs. Nossa reportagem conseguiu entrar em contato com a servidora pública, que disse não ter havido nenhuma briga entre ela e o marido, muito menos ameaça com tesoura, conforme foi noticiado também por outros veículos da cidade. Além disso, Joane afirmou ainda que o próprio Edmilson foi quem chamou os agentes de segurança para ajudá-lo a resolver a situação que teria dado origem ao conflito citado na nota da Guarda.
Segundo ela, Edmilson estava na Praça trabalhando desde o período da manhã. Por volta das 16h30, um homem e uma mulher que costumam ficar no local pedindo dinheiro, com uma caixa de som e a foto de uma criança, pararam em frente ao pano onde o artesão exibe o seu trabalho e comercializa as peças que produz. Então, ele teria pedido para que o casal fosse para outro espaço da Praça para não atrapalhar suas vendas, mas eles se recusaram, e isso teria motivado uma discussão.
“O meu esposo foi pedir para saírem da frente do pano dele, aí o cara não falou nada”, relatou Joane. Porém, a outra mulher, segundo a servidora, começou a se dirigir a Edmilson com palavras ofensivas e racistas. “Meu esposo sabia que ele não poderia fazer nada com essa situação, daí foi procurar a Guarda Municipal para ajudar nesse momento, que foi quando eu cheguei do trabalho e vi a mulher xingando ele”.
Porém, Joane afirmou que a mulher que estava discutindo com seu marido também teria entrado em contato com a Guarda, dizendo que o artesão estava armado com uma tesoura, ameaçando-a de “furá-la”. À nossa reportagem, a servidora confirmou que seu esposo possuía uma tesoura, além de alicate e outras ferramentas, mas que elas são utilizadas unicamente por conta do seu trabalho como artesão e que não houve ameaça ou tentativa por parte de Edmilson de ferir a outra mulher, que não foi identificada.
Ainda de acordo com Joane, quando a Guarda chegou ao local, os agentes não se dispuseram a ajudar o seu marido, solicitando à mulher que parasse de ofendê-lo. Em vez disso, pediram para que Edmilson saísse do espaço onde ele estava, o que o deixou revoltado, levando-o a questionar a postura e a atitude dos membros da força de segurança.
“Vocês não vão fazer nada? Eu tô aqui trabalhando e vocês tão vendo essa pessoa fazendo isso aí comigo, e eu não tenho direito nenhum? Por que a Guarda Municipal não quer me ajudar? Por que eu sou preto? Por que eu sou artista? Vão ficar do lado dela porque ela é uma mulher branca? Vocês são racistas, são preconceituosos”, questionou Edmilson, segundo Joane, enquanto ela tentava acalmá-lo.
“Eu puxei ele pra sentar no banco, fiquei tentando acalmá-lo, porque estava super revoltado mesmo, pelo descaso, tá entendendo? E aí eles [os agentes] entraram todos no carro. Eu pensei: ‘pronto, vão embora e eu vou conseguir acalmar meu esposo’. Enquanto isso, a mulher e o cara meteram o pé e foram embora. Meu esposo ficou lá, dizendo: ‘seus racistas, ó gente, vocês tão vendo aí? A Guarda Municipal é preconceituosa’, contou a servidora.
Ela continuou: “E aí em vez de deixarem eu acalmar meu esposo, eles desceram do carro, com cassetete, algema, com tudo, e aí fizeram o que vocês viram no vídeo. Jogaram ele no chão, como se fosse um criminoso. A perna dele ficou dobrada, machucou o joelho e as costas dele. Foi uma esculhambação”.
A jornalista Shirley Queiroz disse que, momentos antes da cena registrada no vídeo que viralizou, ela passou pela Praça 9 de Novembro e Joane estava, de fato, sentada em um banco e abraçada com Edmilson, tentando acalmá-lo. “Ele dizia: ‘racista, essa Guarda Municipal é racista’. Nada mais. Quando passei na volta já era essa cena que está no vídeo. Ele dizia: ‘eu não fiz nada, eu não fiz nada’ (…). Tinha gente tentando argumentar, mas os guardas estavam afastando essas pessoas”, contou.
Joane chegou a desmaiar durante a abordagem. Além disso, depois de algemar Edmilson, os guardas ainda montaram uma barreira humana ao redor dele e de sua esposa, enquanto aguardavam a chegada da viatura policial que, posteriormente, o levou para a Delegacia.
“Eu desmaiei porque na hora em que vi aquela cena, eu pensei: ‘pronto, vão matar o meu marido. Fizeram uma roda em volta dele, como se ele fosse o bandido do século, pra esperar a Polícia Militar chegar pra poder levá-lo pra Delegacia. Não procuraram nem saber o que estava acontecendo, não quiseram nem me ouvir”, relatou.
Joane disse ainda que não deixaram ela acompanhar o marido à Delegacia. “Uma mulher que trabalha numa loja lá da Praça 9 de Novembro que me colocou num táxi e me levou até o DISEP (Distrito Integrado de Segurança Publica)”. No local, o casal registrou queixa contra os guardas responsáveis pela ação. Além disso, lhes recomendaram que procurassem a Defensoria Pública do Estado e outras entidades para que pudessem contar com suporte jurídico.
“Mas, de fato, não teve nenhum motivo para eles fazerem aquela cena toda com meu esposo. Tudo que eles tinham pra justificar a abordagem era o ‘uso de palavras de baixo calão’. [No DISEP], meu esposo disse: ‘eu falei mesmo, mas sabe por que? Porque vocês me ignoraram, me menosprezaram e foram racistas comigo e, por isso, eu fiquei revoltado’. Além do físico dele, nosso psicológico está destruído, acrescentou Joane.
Pouco após o ocorrido, um grupo de conquistenses realizou um pequeno protesto, na Praça de 9 de novembro, no qual chamaram os agentes de segurança de “fascistas”. Nas redes sociais, vários internautas pediram que os agentes responsáveis pela ação sejam responsabilizados criminalmente.
Na manhã de hoje, 15, o vereador Alexandre Xandó afirmou em um post nas redes sociais que, devido aos questionamentos dos conquistenses sobre a atuação da guarda e a falta de um regimento interno, solicitou uma audiência pública para discutir o assunto.
“Às vezes, as pessoas pensam que casos como o que houve no Carrefour ou nos Estados Unidos nunca vão acontecer com a gente, mas acontece mesmo. Não é só coisa de televisão. Pra mim, foi o maior terror, o pior dia da minha vida. Muitas pessoas realmente não sabem o que é sentir na pele o que quem é preto sente”, finalizou Joane.
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