Pipa celebra o amor entre mulheres em seu primeiro disco autoral solo
Por Karina Costa e Maria Eduarda Leite - 23 de julho de 2025
Nascida e criada no bairro Vila Serrana, em Vitória da Conquista, cantora lançou neste mês de julho o EP "Ela, o Mar e Eu". Em entrevista ao Conquista Repórter, ela destaca suas influências na música e o processo de criação do álbum.
Juninho Andrade
Nascida e criada no bairro Vila Serrana, em Vitória da Conquista, Pipa cresceu em um ambiente cercado por expressões artísticas. Sua mãe, Eliane, é professora de formação, mas sempre cultivou um apreço especial pela música. Já seu pai, carinhosamente conhecido como Rubão, era funcionário público, mas também tinha uma veia artística: desenhava, dançava e tocava instrumentos.
Foi Rubão quem apresentou Pipa ao seu primeiro instrumento, o cavaquinho. Quando ainda era criança, ela aprendeu com o pai a tocar a canção “Atrás do Trio Elétrico”, de Caetano Veloso. Essa é uma de suas primeiras memórias com a música. “Eu era muito novinha e achava aquilo fantástico. Para mim, era como se fosse um brinquedo”, conta. Anos depois, a brincadeira se tornaria uma profissão.
O vínculo com a música sempre esteve presente. As reuniões entre parentes eram embaladas por uma diversidade sonora, que ia da música clássica ao Baião de Luiz Gonzaga, passando pelo Pop dos anos 1980, com A-ha e Menudo, até chegar ao som de Pernambuco, terra natal da família materna.
Os domingos na casa da avó eram sagrados. Era quando Pipa podia brincar entre os discos de vinil espalhados pela sala. “Eu gostava muito de mexer neles. […] E tinha os meus favoritos, que eram basicamente aqueles com as capas mais coloridas, que me chamavam atenção”, relembra.
Desses encontros, ela lembra como Chico Science, cantor e compositor pernambucano, era um dos grandes ídolos da sua família. Anos depois, Pipa viria a compreender a potência do movimento Manguebeat e a importância dele, de Chico e da Nação Zumbi na sua formação musical.
Todas essas influências ajudaram a dar forma ao seu primeiro trabalho solo autoral. O EP “Ela, o Mar e Eu“, lançado no dia 4 de julho de 2025, reúne quatro faixas compostas exclusivamente por mulheres, com letras que abordam os afetos entre mulheres. Os arranjos, que combinam elementos do Indie com referências da MPB, criam paisagens sonoras que acompanham a narrativa sensível do disco.
Gravado no Estúdio Drakkar, em Conquista, o EP foi produzido por Diego Oliveira e viabilizado com o apoio do Ministério da Cultura e da Prefeitura Municipal, por meio da Lei Paulo Gustavo. O projeto teve ainda participação de músicos da cena local. Os arranjos foram construídos em colaboração com Andresa Sampaio e Luget, da banda Dost, e Gui Piccoli, ex-guitarrista do grupo da Há Vida Em Marte.
Em entrevista ao Conquista Repórter, Pipa falou sobre o início da sua trajetória profissional, o processo de criação do seu primeiro projeto autoral solo, e a importância de demarcar espaço enquanto mulher LGBTQIA+ na indústria da música. Confira a seguir:
CR: Você começou com o violão aos 10 anos de idade e a partir disso fez da música o seu caminho, passando por bandas de rock e metal até chegar ao seu trabalho autoral. Qual a sua primeira lembrança com a música e o que te fez decidir que era isso o que queria fazer profissionalmente?
Pipa: A decisão de transformar isso em trabalho veio por acaso. A música sempre esteve presente na minha vida. O violão foi o primeiro instrumento que eu aprendi a tocar, mas não foi o primeiro que eu tive contato. Na verdade, foi o cavaquinho, que meu pai me ensinou a tocar. Passado o tempo, no meu aniversário de 10 anos, ele me deu de presente um violão e me ensinou alguns acordes. Com o resto, eu fui me virando sozinha. Todos os outros instrumentos que eu acabei me debruçando no decorrer da vida, foi sozinha ou pegando uma dica com um amigo. Mas o apreço pela música sempre esteve comigo. A família da minha mãe é de pernambucanos. Eles já estão na Bahia há anos, mas são muito saudosos e orgulhosos da terra natal. Eu tenho muitas memórias de infância com a música pernambucana. Eles estavam sempre ouvindo e falando das suas raízes. Meu avô paterno também gostava de música, era um cara muito apaixonado por Luiz Gonzaga. Então, eu escutava muito forró. Na casa da minha avó materna, tinha muito vinil e era um espaço onde eu podia ficar à vontade. Todo domingo, quando a gente ia para lá, era uma alegria. Eu sabia que ia passar a tarde inteira futucando nos discos. Muitos eram mais instrumentais. Acho que por isso demorei para cantar, eu sempre só toquei instrumentos. Às vezes a música nem era 100% instrumental, mas as partes instrumentais mais longas me chamavam atenção. Anos depois, eu comecei a tocar em bandas, mas era um hobby, aquela fantasia de ser uma “rock star”. Tornar aquilo profissional era algo distante, que eu não imaginava fazer. Era um sonho, uma coisa utópica. Eu tinha outros planos para a minha vida profissional, mas, depois de anos tocando em várias bandas da cena alternativa, começaram a aparecer alguns convites mais sérios. O primeiro deles apareceu por acaso, quando Papalo Monteiro me chamou para fazer uma participação em um show durante o lançamento de um livro. Eu estava acompanhando outra pessoa que ia participar desse show, assessorando ela nos arranjos, e Papalo perguntou: “foi você quem fez o arranjo?”. Eu respondi que sim e ele falou: “então você vai tocar com a gente”. Essa foi a primeira vez que eu toquei qualquer outra coisa que não fosse rock. Foi somente uma música, uma participação muito rápida. Depois disso, em 2007, Evandro Correia me convidou para tocar com ele em um show em Livramento. Essa foi a primeira vez que recebi um cachê. Eu já tocava em eventos da cena independente, mas, de modo geral, acabava não recebendo nada, era tudo na base da permuta. Eu sempre conto esse momento como minha estreia profissional, porque foi quando me pagaram pela primeira vez. É uma honra para mim que essa estreia tenha sido ao lado desse grande cara.

CR: “Ela, o Mar e Eu” é um disco que fala sobre os amores entre mulheres e que é formado por composições escritas exclusivamente por mulheres. Como surgiu a ideia desse projeto? E por que você o escolheu para ser o seu primeiro trabalho autoral solo?
Pipa: Eu estava começando a dar os primeiros passos como cantora, mas não compunha. Escrevia, mas não em forma de versos ou canções, pensando que poderia cantar aquelas letras. Não tinha essa intenção. Mas durante a pandemia, eu estava sozinha dentro de casa com meu violão, sendo atravessada por várias emoções, e isso me despertou a vontade de experimentar. Na época, eu tocava na banda Há Vida Em Marte e a gente estava se reestruturando à distância, pensando nas próximas composições. O principal compositor do grupo tinha saído, então eu comecei a a escrever junto com os meninos, principalmente AJ, pensando em formar um repertório para a banda. Acabou que não deu certo seguir no grupo, mas eu continuei esse experimento para mim mesma. A primeira música que eu escrevi, que iria compor o repertório da Há Vida Em Marte, foi uma parceria com o Marcos Marinho. Encontrei nele um parceiro perfeito. Essa canção não entrou no EP “Ela, o Mar e Eu”, mas foi o ponto inicial. Eu sempre toquei na banda dos outros. Nunca me imaginei à frente de um projeto meu. Então não sabia exatamente como começar. Por isso fui conversar com colegas que já estavam em trabalhos solos e autorais. Uma dessas pessoas foi Marcos Marinho. Com esses diálogos, fui percebendo que tinha escrito coisas que realmente poderiam ser formatadas para o lançamento de um álbum. Senti um pouco de medo pelo fato do meu som não ser comercial, mas não queria mudar isso. Depois veio a Lei Paulo Gustavo. Eu já tinha as músicas que imaginava que iriam compor o EP, mas precisei pensar em como potencializar o projeto para que ele fosse mais interessante e tivesse mais chances de ser aprovado. Então optei por tirar essa música feita em parceria com o Marcos e incluir uma outra no repertório, para que ele fosse todo feito por mulheres. As parcerias e trocas com mulheres já estavam acontecendo no meu trabalho e acabou casando com o tema do EP. As canções dialogam muito bem entre si.
CR: De que forma as suas vivências enquanto mulher LGBT em uma cidade como Vitória da Conquista influenciam e se fazem presentes na sua música?
Pipa: Eu não tenho como inventar uma personagem e falar com outra voz que não seja a minha. Com esse EP, queria cantar sobre o que eu estava sentindo, vivendo, e as minhas vivências são com mulheres. Queria falar sobre esses amores de forma explícita. Além disso, com o passar dos anos, fui percebendo e entendendo o quanto é importante que a gente tenha essas referências. Para mim foi importante ter Cássia Eller e outras mulheres sáficas, que viviam suas relações abertamente. Hoje em dia há mais espaço na mídia, então escolhi demarcar esse lugar. Ao mesmo tempo que falar sobre isso é muito eu, é uma troca também. Tenho parceiras que compuseram comigo que compartilham esse sentimento. Andresa Sampaio, Marlua e Fernanda Conegundes. São mulheres lésbicas e bissexuais. Estamos nas canções falando de amores entre mulheres, em alguns momentos de forma explícita, em outros não. É claro que quando você toca uma vez ou outra para os amigos, num círculo íntimo, é mais fácil. E quando isso toma uma proporção maior, você se sente exposta. Mas eu não sei e nem quero falar de outra coisa.

CR: Você atua profissionalmente desde 2007, acompanhando outros artistas em shows e mais recentemente investindo no seu trabalho autoral solo. Ao longo dessa trajetória, quais foram e são as principais dificuldades que você encontra para escoar a sua arte, enquanto artista independente fora de uma capital ou grande centro?
Pipa: Começa pela falta de políticas públicas para a cultura. Isso é primordial. Esse EP é fruto de uma política pública que surgiu num contexto emergencial, num momento em que se percebeu o quanto a indústria movimenta diversos setores. No contexto local, a gente sente falta, inclusive, de questões estruturais. Precisamos de espaços para fazer shows, eventos ou até uma festa. A gente ouve por aí pessoas dizendo que não tem público, mas não é isso. Tem plateia, mas, muitas vezes, não tem estrutura para receber essas pessoas. Em Vitória da Conquista, temos uma dificuldade muito grande de encontrar locais para colocar bandas com repertórios autorais. A inserção no mercado é difícil, ainda mais com músicas autorais. Aqui na cidade ainda encontramos algumas produtoras que fomentam a música autoral. Isso é o que nos salva. A gente sabe que tem chance de tocar nosso trabalho quando sabemos que terão eventos produzidos por esses grupos. Mas, ao mesmo tempo, sentimos falta de mais produtoras, espaços e oportunidades. Essa ausência nos obriga a ter milhares de funções para que as coisas aconteçam. Eu queria ser apenas artista, mas preciso ser gestora do projeto, saber um pouco de mídia, marketing, produção. Às vezes, no meio disso tudo, o artístico fica até de escanteio. Faltam muitas coisas, mas acho que o mais importante é o fomento e a garantia de uma estrutura mínima.
CR: Além de cantora e compositora, você tem uma trajetória de militância política, inclusive como atual presidente do Conselho Municipal da Diversidade Sexual e de Gênero. Um levantamento recente feito pelo Conquista Repórter apontou que, em sete anos, apenas um Projeto de Lei voltado para a população LGBTQIA+ tramitou na Câmara Municipal de Vitória da Conquista. Enquanto membro do conselho, como você observa o envolvimento do Legislativo e do Executivo com as demandas dessa comunidade?
Pipa: A criação do conselho foi de extrema importância. Mas é difícil porque ainda faltam muitas coisas. Falta orçamento, uma melhor formatação da militância organizada, até a própria falta de formalização dos coletivos dificuldade esse trabalho. Quando chegamos nesse lugar, tínhamos um coletivo engajado, com vontade, mas sofremos muita retaliação. Não temos projetos vindo do Executivo, mas nós temos ideias e indicações. Só que há o entrave de que questões legislativas precisam ser encaminhadas do Executivo para a Câmara para serem aprovadas. No momento, estamos trabalhando com sugestões e articulações. Nós tivemos recentemente uma reunião com a Procuradoria do Trabalho para falar sobre empregabilidade. O que estamos fazendo é dialogar com essas instâncias de poder para que elas possam também cobrar do Executivo políticas públicas para a população LGBTQIA+. Não só emprego, mas educação e saúde também são extremamente prioritárias para a nossa comunidade. E uma coisa acaba influenciando na outra. Artisticamente, eu também contribuo com essa luta. Acredito que demarcar esse lugar de mulher LGBT+ na música é importante para mostrar que somos uma população viva, ativa, que produz e tem um trabalho de qualidade. No meu caso é a arte, mas isso serve para todos os outros setores em que as pessoas LGBTs atuam. É difícil, mas não abandonei a tarefa e não quero apagar essa parte da minha história. Assim como na música, quero estar nesse lugar sem vergonha, sem medo, embora não seja fácil.
CR: Para finalizar, quais são as perspectivas na música e principais novidades pós-lançamento do EP “Ela, o Mar e Eu”?
Pipa: Com esse trabalho na rua, nós estamos nos organizando para apresentá-lo ao vivo. No dia 09 de agosto, no Culinária Intuitiva, vamos fazer um evento chamado Noite Indie, onde teremos o show de lançamento do EP “Ela, o Mar e Eu”. Vão se apresentar também outros artistas, como a banda Há Vida Em Marte, Vinih Fonseca e o DJ Arq-X. É um projeto capitaneado pelos próprios artistas, para ajudar a colocar nosso trabalho na rua, favorecendo a cena autoral de Vitória da Conquista. Também estarei no Festival Suíça Baiana, evento muito aguardado por nós todo ano, com um gostinho mais especial agora com o EP lançado. E mais para frente, estamos focando em outras apresentações para escoar o trabalho. Também estamos cuidando da parte burocrática. A gente lançou o álbum e agora precisamos nos estruturar enquanto artistas. Para o ano que vem, teremos single e clipe. Na verdade, nós já temos um clipe pronto, mas ainda não sabemos como vamos fazer esse lançamento, então, por enquanto, não temos data marcada. Mas posso dizer que agora o foco é o show ao vivo. Estamos procurando expandir as nossas redes de contato para fazer esse trabalho chegar ao máximo possível de pessoas.
Ouça abaixo uma prévia do EP “Ela, o Mar e Eu”. O álbum completo está disponível no Youtube e também no Spotify.
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