Ensaio | Elomar Figueira Mello: o conflito entre o homem e o artista na música “O Peão na Amarração”

Por - 12 de maio de 2022

Versos da canção revelam uma luta interna entre a genialidade do compositor com a figura de menor estatura do arquiteto e dono de fazenda.

“é a ceguêra de dexá

um dia de sê pião

num dançá mais amarrado

pru pescoço cum cordão

de num sê mais impregado

e tomem num sê patrão

u’a vontade qui me dá

dum dia arresolvê

jogá a carga no chão […]”

Certa vez utilizei os versos acima para expressar a potência da poesia de Elomar Figueira Mello. Uma imagem poderosa que, em poucos caracteres, sintetiza um anseio da humanidade: se tornar livre dos trabalhos compulsórios, seja pela qualidade de posse forçada, jurídica ou mesmo pela necessidade de venderem, livremente, sua mão-de-obra.

Dizem que as epígrafes prenunciam o que se seguirá na obra. Vejam, por exemplo, o poema “A cidade”, de K. Kaváfis, que, como epígrafe, parece apresentar ao leitor o livro “Órfãos do Eldorado”, de Milton Ratoum. Os versos de Elomar simplesmente empalideceram mais de uma centena de páginas dessa obra que o antecipa. Qualidade da grande arte.

E a grande arte, como uma ideologia pura, aquela que não é voltada para nenhuma prática (política, de manifestação social, etc.), reverbera anseios da humanidade que subverte, subjetiva e individualmente, o poder manipulador do status quo. No caso da letra de Elomar, a relação de domínio do homem sobre o homem (ou simplesmente patrão versus empregado).

Essa lógica do domínio de parte da humanidade por outra parcela (menor) da humanidade, que preserva uma situação milenar, vil e desumana, ou seja, o domínio da esfera particular (o proprietário privado) sobre a esfera comunitária, sofre uma crítica avassaladora na negação de duas situações angustiadas pelo peão: não ser mais empregado. Não ser mais patrão.

Mesmo que a alma não possa “viver de não querer”, como aponta certa personagem de um conto de Thomas Man, a negação da relação social dominante/dominado tem um certo caráter superior de consciência.

Essa negação afirma uma subjetividade parcialmente superior do peão porque rompe, no plano da consciência, com a particularidade de superação de sua condição de vida. Isto é, ele não sonha em enriquecer e dominar outros peões. Essa subjetividade superior se dá exatamente porque o peão se conecta, mesmo sem plena consciência disso, com o que mais o liga ao gênero humano: o anseio por relações sociais humanamente elevadas, que pressupõem a cooperação e não a dominação do homem sobre outro homem.

A subjetividade parcialmente elevada do peão, claro, é expressada pela subjetividade que transborda a posição pessoal e de pleno controle do compositor (Elomar), e, em última análise, é o anseio por uma sociedade sem classes. E como se sabe, a defesa de uma sociabilidade nesses patamares é um dos pilares do comunismo. E como se sabe mais ainda, o artista que fez jorrar esse desejo do peão é, no campo político, um duro crítico das teses comunistas (basta a afirmação na “pré-fala” de Sertanílias sobre a utopia de Sertano: “Nada a ver com comunismos, socialismos e suas laias”). Ou seja, das teses que mostram, acreditemos ou não, o porquê não deveria ter nem empregado, nem patrão.

Mas a grande arte é conflito.

E o conflito nessa música de Elomar parece transbordar uma luta interna entre a genialidade do artista com a figura de menor estatura do arquiteto e dono de fazenda.

Por isso, sem sair do campo da grande arte, mas já como que acordado pelas bofetadas de sua fé, o autor se reconcilia com seus anseios particulares. A certa altura da letra, esses passam a falar mais alto do que aquela subjetividade conectada com a humanidade. Lembremos: sem patrões e sem empregados.

Assim, ao final, já tolhido pela camisa de força da religiosidade, temos esses versos:

mais a canga do pescoço

Deus ponhõ pro módi Adão

dessa Lei nunca me isqueço

cum suó cumê o pão

mermo Jesus cuano moço

na Terra tomem foi pião”.

Acima, a voz particular de Elomar naturaliza a situação dos trabalhadores. O deus, tão bem esquadrinhado por Saramago, colocou a canga em nosso pescoço. Mesmo o filho do todo poderoso, carregou essa canga. Aqui a imagem nos prende a uma sociedade tal qual ela é. Aqui Elomar prende a humanidade às suas situações desumanas.

Essa reconciliação com o deus opressor por parte do peão, reforçada de domingo a domingo, sugere que aquelas reflexões do peão eram coisas do tinhoso. E a bela poesia de Elomar quase decai em uma parábola: quando o homem problematiza sua vida e mordisca a maçã do conhecimento,  temos o pecado, o inferno… Daí a necessidade da religação com deus.  

E o “quase decai” aqui tem muitas consequências. Isso porque poderíamos levantar um problema: a voz do final da letra é uma subjetividade particular de Elomar ou uma expressão do limite da subjetividade dos peões nas amarrações? Como o texto não se pretende dual, maniqueísta, não flerta com deus nem com o diabo, ficaria com as duas.

*Bruno G. Paixão é professor de História, doutor em Ética e Filosofia Política, e um grande fã da obra de Elomar (pomposamente chamada de elomariana).

*Imagem de capa: Romeu Ferreira.

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