“Acredito na arte como uma ferramenta de resistência”, afirma Patrícia Moreira

Por - 13 de setembro de 2024

Em agosto de 2024, a cineasta e professora da Uesb venceu a 23ª edição do Prêmio Grande Otelo de Cinema, na categoria de Melhor Curta-Metragem de Animação. Em 2025, ela trabalhará na produção do seu primeiro longa-metragem.

Acervo Pessoal

Cineasta, atriz, professora, mestra e doutoranda em Memória pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). Essas são algumas das funções que compõem o currículo de Patrícia Moreira, conquistense vencedora da 23ª edição do Prêmio Grande Otelo de Cinema, na categoria de Melhor Curta-Metragem de Animação. Com o seu filme “Mulher Vestida de Sol”, ela levou para o palco da maior premiação do cinema brasileiro a potência da arte produzida por mulheres no interior baiano.

A palavra que a melhor define é multiartista. Desde a infância, as diversas manifestações culturais fazem parte da sua vida. O pai seguiu o caminho da música e do desenho, enquanto a mãe trilhou um percurso semelhante através do canto. Com Patrícia, não poderia ser diferente. Todas as influências ao seu redor despertaram nela a paixão pela arte. Durante sua trajetória, transitou pelas artes plásticas, depois ingressou no teatro, e, mais tarde, iniciou sua atuação no cinema.

Segundo a artista, ela até tentou seguir por caminhos “mais tradicionais”. No ano de 2005, graduou-se em Engenharia Agronômica pela Uesb. Porém, não conseguiu se sentir realizada naquela área. Dentro de si, sabia que sua verdadeira vocação estava nas artes. “Acredito que a arte é uma forma de expressão que atravessa as barreiras culturais, sociais e pessoais, criando pontes de entendimento e empatia. Creio nela como ferramenta de resistência e transformação”, destaca a cineasta conquistense.

A crença na arte motivou Patrícia a buscar outra formação na Uesb. Em 2011, ingressou no curso de Cinema e Audiovisual. Anos depois, em 2018, retornou à instituição como professora da mesma graduação. “Quando comecei a lecionar, um novo horizonte se abriu, no qual pude conciliar o ensino com a produção artística. Meu objetivo é contribuir para uma educação que fomente a criatividade e a reflexão crítica”, aponta a pesquisadora, que finaliza o seu doutorado ainda em 2024.

Na imagem, Patrícia durante a gravação de “Amoras”, seu Trabalho de Conclusão de Curso na Uesb. Foto: Acervo Pessoal.

Atualmente, seu currículo acumula mais de 40 curtas e médias-metragens. Ao longo dos anos, tornou-se uma cineasta reconhecida dentro e fora do país. Após a conquista no Prêmio Grande Otelo de Cinema, se prepara para produzir o seu primeiro longa, que deve ser realizado em 2025. Em entrevista ao Conquista Repórter, ela falou sobre o processo de criação de “Mulher Vestida de Sol”, o reconhecimento do trabalho da mulher no cinema e muito mais. Confira a seguir:

CR: O curta-metragem “Mulher Vestida de Sol” narra a jornada de busca interior de Liah. A produção foi premiada mais de 20 vezes, nacional e internacionalmente, como por exemplo, na 6ª edição da Mostra Lugar de Mulher é no Cinema, em Salvador, na 16° Curta Taquary, em Pernambuco, e, mais recentemente, no Prêmio Grande Otelo de Cinema Brasileiro de 2024. Como as vivências e experiências de Patrícia se conectam com a jornada de Liah? Existe algo dela em você ou vice-versa?

Patrícia Moreira: No final de 2022, eu estava dando aula quando um aluno veio me procurar e disse que queria tirar a própria vida. Eu não sou psicóloga, mas tentei fazer o que estava ao meu alcance. Conversei com ele e o levei para que fosse atendido pela equipe de Psicologia da Uesb. Infelizmente, um tempo depois, ele cometeu suicídio. Fiquei muito abalada com a situação. E foi a partir daí que eu pensei em fazer esse filme. Antes da morte dessa pessoa, em sala de aula, eu havia pedido aos estudantes que escolhessem materiais de artistas plásticos para que fossem utilizados posteriormente na montagem de uma animação. E esse meu aluno em questão havia escolhido fazer um trabalho que tinha a ver com a espiritualidade. Ele me mostrou uma página que se chamava “A mulher vestida de sol”, que era relacionada a uma passagem bíblica. Inclusive, no final do meu filme, coloquei uma dedicatória a ele. Então, esse curta tem um pouco dele, mas também de mim. A personagem principal, Liah, incorpora as minhas próprias angústias, mas também reproduz falas que ele havia me dito naquela conversa. O filme é um curta-metragem existencialista. Traz o questionamento do porquê estamos aqui. E tem muita relação com uma resposta que eu não consegui dar a ele naquela época. Essa produção foi uma forma de botar para fora os meus sentimentos. É um filme que fala de solidão e como a gente encontra respostas a partir da ancestralidade. Não foi uma obra que fiz para ganhar prêmios, mas sim para falar do que eu estava sentindo. É uma animação despretensiosa, em 2D, cheia de questões técnicas e que, ao mesmo tempo, não segue uma linha “disneyzada”, como dizia o saudoso Chico Liberato. Não é uma narrativa fluída, é disruptiva, para causar incômodo. É uma história que traz coisas que eu ficava sempre me perguntando: “eu sou preta? sou indígena? O que eu sou?”. Porque existe um apagamento grande na nossa História e o tempo todo você fica se perguntando quem é. Então esse filme é resultado da mistura de diversos elementos. Foi feito com pouquíssimo dinheiro, através de um edital de extensão do “II Festival Cultural Uesb – Estéticas e Ancestralidade”. Eu tinha, inicialmente, três alunos me ajudando a animar e, depois, mais quatro se juntaram a equipe. Trabalhei muito. Fiz a montagem de animação, desenhos, desenho de som, cantei, coloquei todas as vozes. Todas as vozes das personagens são minhas, só que modificadas. Tudo isso porque eu queria mesmo finalizar o filme. Depois disso, naturalmente, as coisas foram acontecendo. Em 2023, ganhamos muitos prêmios. Além das premiações, participamos de quase 30 festivais e de muitas mostras de cinema. Foi muito impactante. Eu pensava: “como um filme que foi ‘feito no facão’, sem pretensão nenhuma, conseguiu chegar tão longe?”. E a resposta que encontro não é nem pelo filme, eu acho que é muito mais pela narrativa, pelo roteiro, pela forma como a obra impacta as pessoas que assistem a ela. É uma narrativa que impacta por falar das nossas angústias, das nossas buscas e, ao mesmo tempo, da forma como nós temos dentro de nós uma luz, que é essa mulher vestida de sol, uma luz própria, uma luz que você encontra dentro de si mesmo(a).

CR: No seu discurso no Prêmio Grande Otelo, você destacou a presença das mulheres no cinema e agradeceu aquelas que vieram antes de você. A direção, principalmente, ainda é um espaço muito dominado pelos homens, apesar de haver um movimento recente em reconhecer mulheres atuantes nesse campo. Como você observa a atuação feminina na produção do cinema e audiovisual? 

Patrícia Moreira: Não tínhamos referência do negro na televisão. Quando a gente olhava, víamos outros corpos sendo representados. Não víamos os corpos gordos, os corpos indígenas, velhos, os “estranhos”. Não nos víamos. Quando olhamos para o cinema e todo o seu histórico de grandes cineastas, poucas são as mulheres que podem ser referenciadas porque elas, muitas vezes, estão nos bastidores, na pesquisa, na montagem, em lugares que são invisibilizados. Quando eu entrei no curso de Cinema, queria ser diretora. E ser diretora tem um peso muito grande porque você precisa ser boa em tudo. Você tem que entender tudo da cadeia produtiva cinematográfica. E nós não encontramos tantas mulheres diretoras. Encontramos muitas atrizes – o que já é um mérito fabuloso. E são muitas dessas atrizes que se tornam diretoras depois. Mas quando a gente não se vê nesses lugares, achamos que é impossível estar nesses ambientes. E ainda são ambientes muito misóginos. Isso é uma realidade. Várias mulheres que conheço, que são diretoras e muitas atrizes também, falam muito a respeito de como esses corpos femininos ainda são vistos em sets de filmagem. Isso traz muita dor. Mas, como entrei nesse mundo cinematográfico para ser diretora, sempre fiz questão de dirigir meus trabalhos, porque eu sempre achei importante a gente falar das nossas narrativas. As narrativas do cinema ainda são narrativas masculinas, que sexualizam o corpo feminino. “Mas é possível um cinema de uma mulher que fala de outra mulher?”, foi algo que já ouvi. E sim, é possível. Eu vejo nisso uma potência muito grande. É importante que nós estejamos nos cargos mais altos em todos os lugares, nos departamentos de direção de fotografia, direção de arte, montagem. Existem vários homens que eu amo como cineastas. Não se trata disso. Muitas das minhas grandes referências são masculinas, porque é esse o mundo em que eu vivo. Mas hoje eu já posso assistir, por exemplo, ao filme em que Dira Paes atua como diretora – uma mulher que trabalhou na frente das câmeras por muito tempo, como atriz. Hoje eu posso assistir a outras mulheres e me olhar a partir daquilo. Isso é muito pulsante. No ano que vem, vou ter a grande alegria de fazer meu primeiro filme longa-metragem. E ele vai ser a narrativa de uma mulher sobre uma outra mulher. Fiquei protelando isso por muito tempo. Eu tenho mais de 40 curtas e médias-metragens e, somente em 2025, vou fazer finalmente o meu primeiro longa. Estou muito feliz em poder falar de uma mulher, que é Madalena dos Santos Reinbolt, uma artista plástica de Vitória da Conquista. Ele é pouco conhecida, morreu na década de 1970 e tem uma história linda.

Além de cineasta, Patrícia também é pintora, desenhista, artista plástica e atriz. Foto: Acervo Pessoal.

CR: Você chegou à premiação máxima do cinema brasileiro com uma produção nordestina, de uma mulher negra falando também sobre suas raízes e com recursos limitados de uma pesquisadora dentro de uma universidade pública. No ano passado, o filme Alice dos Anjos, de Daniel Leite Almeida, produzido aqui na região, também ficou reconhecido nacionalmente. Para você, o que essas conquistas dizem sobre a produção cinematográfica dos interiores, que muitas vezes são subestimadas em detrimento de obras feitas no eixo Sul-Sudeste do país?

Patrícia Moreira: No meu mestrado, estudei Chico Liberato, um artista plástico, baiano, nascido em Salvador, que se tornou cineasta animador. E a narrativa dele é essa que toca no Nordeste. Fala dos indígenas, do Boi Aruá, dos ritos de passagem de Lampião. Eu descobri estudando sobre ele que os seus roteiros vinham de Alba Liberato, a poetisa e artista plástica, que traz nessas formas de falar sobre o Nordeste e a nossa ancestralidade um jeito muito próprio. Isso me impactou. Sempre quando fazia minhas pinturas, achava que tinha uma influência muito europeia, muito norte-americanizada. Mas quando eu vi aquela narrativa nordestina, aquilo me tocou muito profundamente. É massa você se ver ali. Ver um personagem que, por exemplo, tem um rosto mais largo, um cabelo crespo, um jeito de cantar das lavadeiras, coisas que lembram nossas avós, nossas tias. Quando você vê essa narrativa de Alba Liberato junto com o Chico Liberato, que fazia uma animação sem preocupação com a forma de quadro a quadro, você assiste a uma coisa muito fluida, nem percebe que são vários desenhos para formar um segundo de filme. Era um desenho truncado, que se parecia à xilogravura, uma coisa meio primitivista. E aquilo me encantou. É aquela forma disruptiva, que não é tão tradicional e traz a essência do que a gente faz aqui no Nordeste. Porque é tudo feito do jeito que a gente aprende com os nossos avós, com a nossa família. Do jeito que a gente aprende desenhando em casa. É a liberdade para fazer as coisas do jeito que a gente sabe. Isso me trouxe para mais perto da condição de criar “Mulher Vestida de Sol” e os filmes que eu vou fazer daqui para frente. Levo essa narrativa também para as coisas que eu pinto, sem me preocupar tanto com a forma que nos foi imposta por outras pessoas que não são as nossas.

CR: De maneira geral, o investimento na Cultura não é uma prioridade para o Poder Público. Na terra de Glauber Rocha, “pai do cinema novo”, essa realidade não é diferente. Enquanto cineasta e professora do curso de Cinema e Audiovisual da Uesb, como você avalia a gestão da pasta da Cultura no município e no Estado? 

Patrícia Moreira: Na época em que Gilberto Gil foi ministro da Cultura, foi muito profícuo. Houve um boom de modo geral. Tínhamos vários editais e políticas públicas. Mas, a cada era da política, isso vai modificando. No governo federal anterior, houve um desmonte do cinema e do audiovisual, e em todos os âmbitos artísticos. Foram épocas muito tenebrosas para os artistas. A gente não tinha apoio cultural, os editais foram paralisados, não existiam recursos para a arte. Os artistas ficaram desassistidos. Agora estamos numa nova fase, com as leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc. São editais importantes, claro, são políticas públicas. Não chegam para todo mundo, mas têm um resultado. Deste ano até o ano que vem, vão ser cinco longas-metragens produzidos por conquistenses ou pessoas que moram em Conquista. Isso impacta diretamente na cadeia produtiva cinematográfica regional baiana, até porque, quando um cineasta consegue recursos para produzir um filme, está trazendo junto um monte de outras pessoas neste trabalho. Eu penso muito a respeito do porquê alguns não conseguem acessar os editais. Existem cineastas que se deparam com a impossibilidade de escrever um bom projeto por não ter formação suficiente. Essa é uma preocupação dentro do curso de Cinema da Uesb. Muitas vezes esses artistas têm uma câmera na mão e uma ideia na cabeça, como dizia Glauber Rocha, mas não têm essa prospecção burocrática. Nos últimos editais, muitos dos nossos alunos conseguiram passar. Por isso que eu falo da importância do curso de Cinema. A arte não sai de nossos poros somente. Esse é o papel da formação, que não acontece somente dentro da graduação. Temos também o Janela Indiscreta, que sempre foi um lugar de fruição importante para o nosso cinema. A nível municipal, tivemos um avanço por meio da Lei Paulo Gustavo, mas ainda incipiente. Nós recebemos recurso por meio de edital, porém deveria haver uma política pública continuada. Não estamos pedindo dinheiro, estamos solicitando a possibilidade de nos expressar por meio da arte e de oferecer ao público coexistências. Estamos pedindo condições para atuar nesse setor artístico de forma digna. Antes eu pensava que ser professora era minha condição de sobrevivência. Hoje eu não penso mais dessa forma, acho que contribuo dentro da universidade e das escolas onde já ensinei, para que as pessoas possam enxergar a arte como uma possibilidade inteira.

O currículo de Patrícia acumula mais de 40 curtas e médias-metragens. Foto: Acervo Pessoal.

CR: Em Vitória da Conquista, a revitalização e a reabertura do Cine Madrigal é uma reivindicação antiga dos profissionais do audiovisual e também da classe artística no geral. Trata-se de um espaço que um dia movimentou a cena cultural na cidade e atualmente encontra-se abandonado. Qual a importância de existir no município espaços físicos que estimulem a produção e apreciação da arte?

Patrícia Moreira: Eu sou sócia-fundadora de uma associação que se chama “Simgular”, que tem como presidente Drª Rosa Aurish. Nós fomos chamados pelo Hub Conquista para participar da construção ainda embrionária de um projeto arquitetônico para a revitalização da Casa Glauber, que também passa pelo Madrigal. Sabemos que ações como essa necessitam de muito fôlego, estamos ainda em negociação e construção com diversos parceiros. Eu amava o Cine Madrigal, tanto que tenho um filme sobre esse equipamento – o Madrigal de Memórias. Uma produção muito querida, que fiz com algumas pessoas que trabalhavam lá. Se estivesse revitalizado, seria um espaço onde a gente poderia escoar a nossa produção, distribuir os nossos filmes, que já são mais de centenas em Conquista e região. A grande questão é que, para ser reativado, é necessário um projeto no custo dos milhões de reais. É muito caro. Infelizmente o Cine Madrigal tem vários problemas arquitetônicos muito graves. Estamos tentando. São várias associações, grupos, e acredito que até a Prefeitura, buscando meios de tornar esse local viável novamente, mas é complicado. Mas seria importante conseguir levantar esse espaço e torná-lo referência para a fruição do cinema regional e brasileiro. Porque a gente vai ao cinema aqui, mas eles ficam nos shoppings, e para a gente ver filme nacional, só se for da Globo Filmes. Não tem demérito nenhum nisso, mas a gente não consegue assistir filmes regionais, só norte-americanos, grandes blockbusters. Ficamos desprivilegiados sem a presença do Cine Madrigal. Mas sonho com o dia em que ele será reaberto. É um lugar de carinho, de memória afetiva. Espero que no futuro tenhamos recursos para trazer esse sonho de volta para a nossa realidade cinematográfica.

Edição: Karina Costa.

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