Vitória da Conquista pagou quase R$1,5 milhão em Plano de Saneamento Básico engavetado
Por Victória Lôbo - 30 de outubro de 2025
Gastos com contratos de planejamento para universalizar acesso à água tratada, coleta de lixo, drenagem e esgotamento sanitário chegam a R$ 3,83 milhões, mas distritos rurais seguem com menos de 2% de cobertura de esgoto.
Entre 2019 e 2020, a Prefeitura de Vitória da Conquista pagou R$ 1.455.136,86 à Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE) pela elaboração do Plano Municipal de Saneamento Básico (PMSB). A proposta traçou um roteiro de R$1,68 bilhão para universalizar o acesso à água, esgoto, drenagem e coleta de lixo no município até 2040.
Cinco anos após a conclusão técnica do plano e apresentação do documento em audiência pública, ele nunca se tornou lei, motivou uma ação do Ministério Público por descumprimento de prazos federais e, como revelam dados do Censo Demográfico, a omissão política aprofundou um abismo social entre as zonas rural e urbana. Entre 2010 e 2022, a cobertura de esgoto na sede saltou de 60,7% para 83,2%, enquanto distritos rurais como Dantilândia permaneceram estagnados em 0,9%.
As histórias por trás desses números têm sons como o de um rio violento em período de enchente. Em dezembro de 2021, quando o Rio Pardo transbordou, para João Paulo Oliveira, agricultor do quilombo Cachoeira do Rio Pardo, localizado no distrito de Inhobim, o barulho era símbolo da perda. A correnteza não só quase cobriu a ponte que liga sua comunidade ao resto do município, como também engoliu suas plantações de cana, milho e feijão. “Levou a terra, tudo que tinha e só ficou as pedras”, conta ele.
O relato, colhido pelo Conquista Repórter durante a produção da segunda temporada do podcast Fatos & Vozes, é um dos retratos de uma cidade onde a falta de infraestrutura de drenagem, esgoto e abastecimento de água atinge de forma desigual centro, periferia e zona rural. O que poucos sabem é que a solução técnica para esses problemas, o Plano Municipal de Saneamento Básico (PMSB), existe, está detalhada em centenas de páginas, mas continua engavetada pela Prefeitura. Em 2025, o plano não está apenas parado. Ele nasceu desatualizado, baseando seu diagnóstico em dados de uma década e meia atrás.
Investimento milionário
Com base nos dados do Portal da Transparência de Vitória da Conquista, os pagamentos efetuados à Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE) revelam um investimento milionário em estudos e planejamentos que não resultaram na implementação efetiva do Plano Municipal de Saneamento Básico (PMSB).
O custo específico para a elaboração do PMSB, vinculado ao Contrato 026-35/2019, totalizou R$1.455.136,86. Esse valor foi pago pela Prefeitura entre 2019 e 2020, por meio de sete parcelas principais, quitando o contrato e suas complementações. Os pagamentos foram todos registrados na Atividade Orçamentária 1.080 – Plano Municipal de Saneamento Básico.
O montante de R$ 1,45 milhão referente ao PMSB é resultado de um empenho original e de reempenhos/complementações. O contrato inicial teve um empenho de R$ 926.000,00, em maio de 2019. Posteriormente, a Ficha do Favorecido (CNPJ 43.942.358/0001-46) registra reempenhos para a mesma atividade 1.080 em 2020, notavelmente um de R$ 700.000,00 e outro de R$ 358.285,70, garantindo os recursos para os pagamentos subsequentes.
No entanto, o valor gasto com o PMSB é apenas uma fração do total pago à FIPE pela Prefeitura. A soma de todos os pagamentos efetivados à instituição entre 2018 e 2022, abrangendo quatro contratos, atinge R$ 3.835.136,86. Esse valor global inclui diagnósticos prévios, a elaboração do PMSB, estudos de modelagem para concessão e o planejamento de leis urbanísticas.
Os outros contratos firmados com a FIPE também estavam diretamente ligados ao saneamento e planejamento urbano. Foram pagos R$100.000,00 em 2018 (Contrato 037-35/2017) por um diagnóstico inicial de tratamento de água, coleta e saneamento. Entre 2020 e 2021, a prefeitura pagou R$ 1.440.000,00 (Contrato 014-22/2020) por um estudo de modelagem para a concessão do saneamento básico ou renovação da EMBASA. Por fim, R$840.000,00 foram pagos entre 2021 e 2022 (Contrato 029-35/2021) para a aprovação do PMSB e revisão de leis de ordenamento territorial.
Um diagnóstico com o retrato de 2010
Quando a Prefeitura contratou a FIPE, a expectativa era por um planejamento moderno. O trabalho técnico para a elaboração do Plano Municipal de Saneamento Básico (PMSB) foi iniciado em julho de 2019 e finalizado em março de 2020, com a entrega dos programas, projetos e ações. No entanto, a base de dados para o diagnóstico era o Censo Demográfico de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ou seja, o plano que deveria guiar Vitória da Conquista até 2040 foi construído sobre uma fotografia de uma década antes de sua própria elaboração.

Mesmo com dados antigos, o retrato já era alarmante. O diagnóstico setorial revelou que mais de 9.400 famílias queimavam ou enterravam o lixo. Além disso, destacou problemas como a dependência extrema de poços, cisternas e carros-pipa; o uso massivo de fossas rudimentares, contaminando solo e água; os alagamentos recorrentes na sede e o isolamento de comunidades na zona rural em períodos chuvosos.

“Qualquer chuva que tiver, a gente não sai daqui. Se adoecer aqui não tem como sair. Porque uma ambulância não entra”, afirma Magna Novais, moradora do quilombo Sinzoca, no Distrito de José Gonçalves. No quilombo de Laranjeiras, distrito do Pradoso, a líder comunitária Suelina aponta realidade semelhante: “Não é buraco. É falta de drenagem mesmo”. A omissão do investimento em drenagem, que consumiria R$1,14 bilhão do custo de execução do plano, faz com que a água desça pela estrada, isolando a comunidade.
Apesar de o documento ter sido construído sobre a realidade de 2010, os dados de 2022 não se revelaram tão diferentes, ainda mais quando se trata da zona rural. Enquanto o documento ficava na gaveta, a década seguinte não trouxe progresso para os 11 distritos rurais; pelo contrário, aprofundou o abandono.
O que o Censo de 2022 revela
Dois anos após a finalização do PMSB, o IBGE divulgou os dados do Censo de 2022, oferecendo a primeira fotografia detalhada do município em 12 anos. A comparação com os dados de 2010 prova que o investimento em saneamento na zona rural não foi suficiente sequer para acompanhar o crescimento populacional.
No esgotamento sanitário, por exemplo, a estagnação é crítica. Em 12 anos, a cobertura em Dantilândia permaneceu em 0,9% e, em Veredinha, subiu de 0,5% para apenas 1,1%. O número absoluto de casas sem acesso à rede de esgoto aumentou em todos os 11 distritos rurais. No abastecimento de água, os dados indicam retrocessos. Em vez de avançar, alguns distritos regrediram em termos percentuais.
| Distrito | Água Cobertura (%) 2010 | Água Cobertura (%) 2022 | Esgoto Cobertura (%) 2010 | Esgoto Cobertura (%) 2022 |
| Sede | 92.8% | 93.4% | 60.7% | 83.2% |
| Cabeceira da Jiboia | 78.2% | 75.3% | 5.9% | 11.4% |
| José Gonçalves | 65.8% | 65.5% | 0.6% | 1.8% |
| Dantilândia | 70.9% | 71.0% | 0.9% | 0.9% |
| Veredinha | 51.5% | 56.2% | 0.5% | 1.1% |
A cobertura de água em Cabeceira da Jiboia caiu de 78,2% para 75,3%, e em José Gonçalves, de 65,8% para 65,5%. No Pradoso, o líder comunitário Antônio Prado é uma das pessoas que lidam com as consequências dessa realidade. Mesmo morando a poucos quilômetros da rede da Embasa, que chega até uma comunidade vizinha, ele costuma pagar até R$300 por um carro-pipa para ter acesso à água.
Mestre em Engenharia Sanitária e docente da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), o professor Samuel Ferreira Jr., detalhou as consequências do plano não ter se tornado lei. Uma delas é justamente a estagnação do setor. “O Plano Municipal de Saneamento Básico não é apenas um documento burocrático, mas um instrumento indispensável à administração pública”, pontua.
“Seriam cinco anos de não melhoria no setor, uma vez que a implantação de novas redes de abastecimento de água seria prejudicada, da mesma forma que as redes coletoras de esgoto, que o sistema de tratamento de esgoto, também como afetaria o sistema de coleta e disposição final de resíduos sólidos e a implantação de sistema de drenagem de águas pluviais”, acrescenta.
O professor também reforça a importância do saneamento como um dos pilares da saúde pública. “A falta dele é o principal fator de transmissão de doenças de veiculação hídrica (como diarreia, febre tifoide, hepatite A, cólera, etc.), que sobrecarregam o sistema de saúde”, explica.
Sobre a drenagem, Samuel confirma que o investimento previsto no PMSB faria a diferença. “A falta de drenagem pode impactar de diversas formas em diversos níveis. O acúmulo de água nas vias públicas prejudica a acessibilidade, dificulta o trânsito, degrada a pavimentação, podem ocorrer erosões do solo, assoreamento de cursos d’água (macrodrenagem)”. Segundo ele, pode ainda acarretar em “prejuízo econômico, por exemplo, dificultar o escoamento de produtos agrícolas (zona rural) ou danos à propriedade e desvalorização imobiliária.”
A solução na gaveta e o jogo político
Enquanto a população rural sofre, o PMSB, que retirou milhões dos cofres públicos, continua parado. O plano não é apenas um diagnóstico; ele estabelece um cronograma de ações, projetos e investimentos para resolver os problemas identificados. A Lei Federal nº 14.026/2020, que correspondeu ao novo Marco Legal do Saneamento, estabeleceu 31 de dezembro de 2022 como data limite para os municípios aprovarem seus planos.
Porém, Vitória da Conquista descumpriu o prazo. Diante disso, a pedido do Ministério Público da Bahia, a Justiça determinou, em 2024, que a administração do município apresentasse um calendário para a implementação da lei. A Prefeitura justificou a demora alegando que o PMSB seria integrado ao novo Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU).
O PDDU foi finalmente aprovado e sancionado em 26 de dezembro de 2024 (Lei Complementar nº 2.959/2024). No entanto, a nova lei apenas cita o PMSB como um “plano complementar”, sem incorporar suas metas ou torná-lo lei. Dez meses após o PDDU entrar em vigor, o plano de saneamento continua no limbo jurídico.
Para o professor Samuel Ferreira Jr., “o PMSB é um instrumento de planejamento municipal, ele deve, portanto, ser aprovado pela câmara municipal. Isso garante legitimidade para o município, segurança jurídica, e a inclusão no plano orçamentário do município”.
Geografia e vulnerabilidade hídrica
Vitória da Conquista é o terceiro município mais populoso da Bahia e deve ultrapassar 434 mil habitantes até 2040, de acordo com projeções do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Localizada a 923 metros de altitude, no Planalto da Conquista, a cidade funciona como divisor de águas das bacias do Rio Pardo e do Rio de Contas.
O município está inserido no semiárido, região marcada por chuvas irregulares e déficit hídrico. Entre 2012 e 2016 enfrentou o racionamento mais longo de sua história e em 2022 decretou emergência em todos os 11 distritos rurais em razão da seca.
O abastecimento depende de mananciais localizados em Barra do Choça, como as barragens de Água Fria I e II, que utilizam o fluxo do Rio Catolé. Esses reservatórios sofrem com desmatamento e uso intensivo da água, o que pressiona ainda mais a disponibilidade de água.
As falhas no abastecimento não se limitam ao campo. Interrupções temporárias são frequentes na sede. Mas na zona rural, o atendimento é quase sempre emergencial. Em 2023, mais de 3 mil famílias em 130 comunidades receberam 7,3 milhões de litros de água transportados por carros-pipa.
No quilombo de Sinzoca, o relato de Magna Novais demonstra a insuficiência do serviço: “Temos água do exército que não abastece toda a comunidade. A Prefeitura colocou três mil litros para cada família.” Conforme o Marco Legal do Saneamento, a população deveria ter a estrutura permanente e a qualidade sanitária da água tratada, não a solução racionada e temporária do carro-pipa.
Todo ano, o ciclo se repete na zona rural. Na seca, falta água. Na cheia, falta paz. A prefeita Sheila Lemos, que em 2021 foi à imprensa nacional falar sobre a crise das enchentes e recentemente decretou estado de emergência durante as secas, agora se silencia sobre a ferramenta que poderia prevenir futuras tragédias.
Nossa reportagem enviou à Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista (PMVC), no dia 25 de outubro, questionamentos sobre a elaboração e não existência de um Plano Municipal de Saneamento Básico no município, mas não obtivemos resposta até a publicação desta reportagem.
Também entramos em contato com a FIPE, que respondeu explicando que “em situações como essa, em que a FIPE é contratada para realizar um projeto, o contrato estipula a obrigatoriedade de confidencialidade. Então neste caso o ideal é que você procure pela Prefeitura da cidade, para que eles possam ajudá-la com as questões”.

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