Duda Nazaré: entre a herança da avó Maria e o poder da escrevivência

Por - 12 de novembro de 2025

Nascida no povoado do Capinal, na zona rural de Vitória da Conquista, a jovem lançou neste ano o seu primeiro livro, "Contos de Maria neta e Maria vó" . A obra reúne memórias de infância, em uma homenagem às mulheres da sua família.

Arquivo Pessoal

Antes de se tornar Duda Nazaré, ela foi Dudinha. Uma menina que dormia na cama da avó, Maria Vitória, e nunca soltava o abraço quente que a cobria de afeto durante a noite. Foi ao lado dos primos, na casa simples do Capinal, povoado localizado a pouco mais de 20 quilômetros da zona urbana de Vitória da Conquista, que Maria Eduarda Nazaré Sousa aprendeu, desde cedo, que amor é cuidado. “Minha infância é a fase mais curta e mais gostosa que tive na vida”, conta.

A mãe, a avó e as tias formavam o seu mundo. Só conheceu o pai com 12 anos. Assim, as suas referências sempre foram as mulheres da família. Enquanto a mãe saía para trabalhar, era a avó Maria quem cuidava de tudo: da comida, dos remédios, dos netos, dos xaropezinhos de erva. Às vezes, Duda fingia estar doente só para continuar tomando o xarope que a mais velha fazia.

Crescer naquela casa era ser envolvida por um cuidado silencioso. O afeto, ali, não se dizia com abraços ou palavras doces, mas se manifestava em pequenas ações do cotidiano, como um chá preparado na hora da febre ou um caldinho de feijão servido antes do almoço para enganar a fome. 

As mulheres da família cuidavam arrumando, penteando, organizando o mundo. Elas sempre garantiam que o cabelo de Duda estivesse bem preso e a roupa alinhada. Cuidar também significava ensinar o que era certo ou errado. Vó Maria sempre dizia para a neta: “quando chegar na casa dos outros, pede a bênção, viu?”

Aos 27 anos, Duda reconhece nesse gesto uma herança sagrada. “Essa questão do respeito e do cuidado é muito forte para mim, com os mais velhos e também com as crianças.” A avó, mulher analfabeta, mas dona de uma sabedoria imensa, foi o centro de sua infância. “Parece pequeno, mas tudo isso fez toda a diferença para eu me constituir enquanto pessoa”, diz.

Quando a mãe se mudou para uma fazenda na zona rural de Barra do Choça, Duda, então com 8 anos, deixou a casa da avó. Mesmo assim, o elo nunca se rompeu, e as visitas eram frequentes. Por causa da precariedade do ensino na região, a família se mudou novamente quando ela tinha 10 anos, dessa vez para a zona urbana de Conquista, em busca de melhores oportunidades.

Duda lançou neste ano o seu primeiro livro, “Contos de Maria neta e Maria vó”. Foto: Maíra Gomes.

Os anos passaram e Duda estava prestes a completar a vida escolar. Depois do ensino médio, não passou no vestibular e, sem saber o que fazer, ficou um tempo em casa, até que uma amiga comentou sobre um curso gratuito de Libras no SESI. “Fiquei encantada. Achei incrível as pessoas se comunicarem dessa forma.” Naquele momento, iniciou sua jornada na comunicação com as mãos.

Com o incentivo de uma professora e a ajuda financeira da mãe, ingressou na faculdade de Libras pela Uniasselvi. “Eu adorei, foi uma experiência incrível, tive professoras maravilhosas.” Mais tarde, entrou na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) para cursar Ciências Sociais, mas não se encaixou na área. Trancou a graduação no quinto semestre, e a decisão, que parecia representar um fracasso, logo se revelou um caminho de possibilidades.

Hoje, atua como intérprete de Libras no grupo Mãos Tagarelas, que presta serviços de acessibilidade para produções audiovisuais. “Quero que o cinema, o teatro e a literatura sejam lugares para todos”, afirma.

O reencontro com a escrita

Além da Libras, a escrita é mais uma de suas paixões. Quando criança, Duda escrevia poesias e lia em voz alta no fim da aula, até que os risos dos colegas e as palavras de uma educadora a fizeram abandonar o hábito. Em um dia que parecia comum, uma professora rasgou seu caderno diante da turma e disse que ela não sabia escrever. “Aquilo foi muito traumatizante. Depois disso, parei de acreditar que o que eu escrevia era bom, legal ou bonito.”

O reencontro com a escrita veio pelas mãos de outra mulher, uma que ela nunca conheceu, mas que mudaria seu destino: Carolina Maria de Jesus. Ao ler “Quarto de Despejo”, Duda se viu transformada. “Pensei: se essa mulher negra, periférica, sem condições, naquela época, conseguiu escrever e publicar o próprio livro, eu também consigo.”

A partir dali, ela voltou a escrever poesias. Criou uma página no Instagram, começou a compartilhar seus textos, e, aos poucos, o medo foi dando lugar à confiança. Os amigos elogiaram, as leituras se multiplicaram e, entre uma descoberta e outra, encontrou Conceição Evaristo. “Ela me trouxe a consciência de que posso escrever a partir de mim, da minha história, da minha trajetória. Que eu posso ser dona da minha voz narrativa.”

Nascida no povoado do Capinal, Duda tem entre suas referências as escritoras Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo. Foto: Arquivo Pessoal.

Se na universidade ela sentia-se deslocada diante das regras formais e da escrita engessada, na poesia, Duda se encontrava. “Foi com Conceição que eu entendi que o que eu escrevo é escrevivência, e que isso é importante.” Demorou um tempo até se reconhecer como escritora, mas Carolina e Conceição a ajudaram nesse processo.

Da avó analfabeta à neta escritora

Quem também a ajudou a construir sua identidade como escritora foi sua avó Maria Vitória. Na família, a educação formal sempre foi um desafio. A mãe estudou até o quarto ano do fundamental, e sua avó, que criou muitos filhos, nunca teve acesso à escola. “Eu lembro quando vi a identidade dela e só tinha a digital. Perguntei pra minha mãe por que e ela respondeu: ‘sua avó não sabe escrever, minha filha.’”

Aquela imagem nunca saiu da memória. A avó era brava, às vezes dura, mas havia amor até na rigidez.  É dessa herança que nasce a sua escrita. “Minha avó foi uma mulher analfabeta, e hoje eu sou uma mulher escritora. Isso é muito forte pra mim”, conta. Na passagem de uma geração que assinava com o dedo para outra que escreve livros, há mais do que conquista individual. Há reparação, continuidade e afeto. 

O primeiro livro de Duda, Contos de Maria neta e Maria vó, é uma homenagem à matriarca. Após deixar a universidade, um espaço que, embora lhe prometesse futuro, também lhe feriu com o peso do racismo e da solidão, ela se viu sem rumo. Foi quando olhou para trás, como o pássaro Sankofa: voltou às lembranças da infância, ao colo da avó, ao brilho nos olhos da menina que sonhava.

“Eu mergulhei completamente nas minhas lembranças. Precisei voltar a ter seis anos de idade para escrever algo tão grande”, confessa. O livro, dedicado à mãe, à avó e à sua espiritualidade como mulher de axé, é também uma conversa com o passado e com Maria Vitória, que partiu quando ela tinha dezesseis anos. “Eu queria ter tido mais tempo com ela, mais histórias, mais perguntas.”

Do lado esquerdo, a matriarca Maria Vitória, e do lado direito, a neta Duda Nazaré. Foto: Arquivo Pessoal.

Quando terminou de escrever a obra, não pensava em publicar. Mostrou o texto a alguns amigos, ouviu elogios, mas ainda duvidava da própria voz. Após o incentivo de pessoas próximas, Duda decidiu mostrar seu livro ao mundo e tentou publicar pelo edital da Lei Paulo Gustavo, mas não foi selecionada. Foi então que um amigo poeta sugeriu uma editora que estava recebendo originais, e ela enviou.

Os dias seguintes foram de espera e descrença. “Eles demoraram dois meses para responder. Eu achava que não ia dar em nada.” Até que, um dia, a espera virou felicidade: o livro havia sido aceito. “Chorei muito, chorei de felicidade. Não acreditava.”

Encontros que reafirmam a escrita

Após a publicação do seu livro, Duda fez uma proposta para participar da 3ª edição da FliConquista, que aconteceu entre os dias 24 e 28 de setembro de 2025. O “sim” chegou como uma surpresa depois de tantas tentativas frustradas de participar de uma feira literária. O livro físico ainda não estava pronto, mas isso não impediu que ela tivesse sua voz e sua história ecoando no palco da feira. “Consegui um espaço para falar sobre o meu livro. Isso, para mim, já foi muito importante”, relembra.

Entre os debates e as conversas com leitores, o que mais marcou foi o encontro com nomes que já moravam há tempos em suas leituras e inspirações. “Quando decidi sair da universidade para seguir como escritora, pensei: ‘se eu sou escritora, preciso também ser leitora’”, conta. E foi nesse momento que a Biblioteca Municipal José de Sá Nunes passou a fazer parte do seu cotidiano. Sem recursos para comprar livros, recorria aos empréstimos, sempre dois por mês, até que um amigo colocou “Torto Arado”, de Itamar Vieira Júnior, em suas mãos.

As páginas de Itamar, com as mulheres do sertão, a relação com a terra, as memórias e as dores do povo negro, despertaram em Duda algo novo. “Eu fiquei completamente encantada com a forma como ele escreve, com a sensibilidade dele”, lembra. Ao descobrir que o escritor baiano também havia deixado a universidade para seguir o caminho da escrita, a identificação foi imediata, como uma espécie de espelho entre trajetórias.

Duda com o escritor Itamar Vieira Júnior na 3ª FliConquista, em setembro. Foto: Arquivo Pessoal.

Encontrá-lo, então, na FliConquista, foi algo que Duda jamais esquecerá. “Quando falei para ele o quanto foi importante na minha trajetória, eu chorei. E ele me acolheu com palavras muito bonitas e fortes. Me deu força para continuar.” Ao lado dele, outras presenças também a acolheram, como Regina Luz e Luciany Aparecida, autora de Mata Doce, cujas palavras foram “cheias de carinho e afeto.”

Entre abraços, trocas e lágrimas, ela percebeu que aquele espaço, mais do que uma feira literária, era a concretização do sonho de estar entre escritores e escritoras que pavimentam caminhos para jovens como ela. Era também só o começo da sua trajetória enquanto poetisa.

O futuro que nasce da palavra

Entre as palavras que mais definem sua trajetória, duas se destacam: persistência e resistência. É com elas que Duda sustenta um sonho que, em muitos momentos, parece distante, quase inalcançável. O mundo literário, ainda hoje, é um espaço marcado pela branquitude, pela elite e pelos altos custos. Para uma mulher negra, de baixa renda, ocupar esse território é, antes de tudo, um ato político.

A caminhada, no entanto, nunca foi solitária. Os amigos, a mãe e a família de axé foram pilares que a sustentaram quando a fé na própria escrita ameaçava fraquejar. Hoje, ela segue firme, mesmo com todos os desafios financeiros e emocionais. “Eu ainda tô na fase de muita luta. Sei que isso não vai acabar, mas meu sonho é ter um lugar de mais dignidade, de mais respeito.”

O livro de Duda será lançado presencialmente no dia 28 de setembro, na Biblioteca Municipal José de Sá Nunes. Foto: Editora Caravana.

Ser uma mulher negra, de candomblé, e com poucas condições financeiras, é carregar o peso de múltiplas resistências. “Eu já passei por muitas humilhações na vida”, confessa. O que ela deseja agora é respirar e viver em um país onde a arte e a cultura sejam acessíveis, onde a existência de mulheres como ela não precise ser provada o tempo todo.

Quando fala sobre o futuro, os olhos dela brilham. No dia 28 de novembro, seu livro de estreia será lançado presencialmente na Biblioteca Municipal José de Sá Nunes, em Vitória da Conquista. Além disso, tem outros contos e poesias esperando o momento certo de ver a luz do mundo. “Eu só estou decidindo a ordem e como vou publicar. Tenho muita coisa guardada.”

Duda também quer levar suas narrativas para o encontro vivo com o público, especialmente nas escolas. “Quero inspirar outras meninas e meninos pretos a escreverem e publicarem seus escritos.”

*Maria Eduarda Leite é estudante do 8º semestre do curso de Jornalismo da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) e estagiária do Conquista Repórter.

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