Celio e o dilema de uma profissão com futuro incerto

Por - 24 de maio de 2023

Morador do bairro Campinhos, na zona oeste de Vitória da Conquista, ele atua como carroceiro há mais de 40 anos. O uso da tração animal, presente em seu cotidiano de trabalho, é alvo de críticas por parte de ativistas que lutam pelo fim das carroças puxadas por burros e cavalos.

Desde pequeno, sempre observei a rotina de trabalho do meu pai, Celio Santos Silva, que há mais de 40 anos atua como carroceiro em Vitória da Conquista. Ele herdou o ofício do meu falecido avô paterno, o Seu Zubirrinha, como era conhecido no bairro Campinhos, onde nossa família vive até hoje, na zona oeste do município. 

Foi meu avô que o ensinou a “guiar a carroça” em busca de fregueses interessados em contratar o serviço de frete, realizado em um meio independente de transporte de cargas que, apesar de obsoleto, continua presente no cotidiano da terceira maior cidade da Bahia. E, ao mesmo tempo, é cercado de contradições.

Afinal, se a rotina da profissão é difícil e cansativa para o meu pai, que sai de casa logo no início da manhã e só retorna no fim da noite, mais desgastante é ainda para o animal sem o qual ele não teria como trabalhar e, consequentemente, ter a sua principal fonte de renda. 

A solução seria substituir a tração animal por um veículo motorizado, prática que, inclusive, foi adotada pela Prefeitura de Conquista para a coleta de lixo em localidades de difícil acesso, desde o fim de abril deste ano. O que antes era feito pelo próprio Poder Executivo com carroças puxadas por animais agora é realizado com motocicletas, graças à luta de grupos e indivíduos que, historicamente, atuam em defesa da causa animal no âmbito local.

Além de trazer agilidade e eficiência ao serviço, a medida preserva a saúde e vida de burros e cavalos, que estão mais vulneráveis a maus-tratos nesse tipo de trabalho. Porém, para pessoas como o meu pai e dezenas de outros carroceiros, falta não só dinheiro para investir na modernização do equipamento que utilizam no dia a dia, mas também ações de conscientização com relação ao cuidado com os animais e à forma como realizam tal serviço.

O uso da tração animal, visto como algo problemático por ativistas, devendo, portanto, ser extinto, é naturalizado para muitos trabalhadores que, assim como ele, moram na periferia da cidade e têm baixo nível de alfabetização.

Celio e sua carroça, no bairro Campinhos. Foto: Talisson Santos.

Meu pai abandonou a escola tão logo começou a atuar como carroceiro, durante a adolescência. Nem chegou a concluir o ensino fundamental. Cresceu de tal modo que a profissão se tornou parte indissociável de sua identidade. “Lembro que, com 12 anos, meu pai [Seu Zubirrinha] mandou eu levar a carroça sozinho, me orientou, e eu que já sabia, guiei certinho, fui e voltei direitinho”, conta.

Foi a partir do trabalho na carroça que ele conheceu minha mãe, Maria Dias Santos, 51, ao ir pegar uma carga no povoado de Laranjeiras, na zona rural de Conquista, onde ela nasceu e morou até os 19 anos. Mudou-se para o Campinhos depois que se casou com o meu pai, com quem teve dois filhos: eu e minha irmã, Tatiane Santos Silva.

Da adolescência até os dias atuais foram muitas as mudanças na vida do carroceiro. Meu avô, que era sua grande referência, faleceu. O primeiro cavalo e a primeira carroça deixados por Seu Zubirrinha também já não existem mais. O menino que precocemente virou trabalhador se tornou pai de família.

A carroça e o burro que tem hoje foram comprados com o dinheiro que conseguiu a partir do próprio trabalho como carroceiro. O animal está com meu pai há mais de dez anos. Ele afirma que se orgulha da profissão e da relação de parceria com outros colegas de trabalho, apesar das dificuldades financeiras que às vezes enfrenta.

Quando chega mais tarde em casa, já sei que o trabalho foi produtivo. Com cinco a seis fretes, ele consegue faturar até R$200 em um único dia. Mas essa é uma situação bastante rara, tendo em vista que sua renda mensal dificilmente chega a mais de R$800. Geralmente, ganha cerca de R$20 a R$30 diariamente. “É pouco, mas dá pra ir vivendo”, diz.

A renda mensal de Celio, gerada a partir do seu trabalho como carroceiro, gira em torno de R$800. Foto: Talisson Santos.

Mesmo com a renda mensal inferior a um salário mínimo, o trabalho com a carroça lhe possibilitou construir a casa onde moramos, que fica em um terreno herdado do meu avô. Além disso, juntamente com a minha mãe, que atua como empregada doméstica, foi possível mobiliar a residência. 

No convívio com meu pai, já presenciei dificuldades diretamente relacionadas ao seu trabalho. Recentemente, por exemplo, seu burro foi levado para o curral municipal da Prefeitura, localizado a cerca de 12 quilômetros da zona urbana de Vitória da Conquista, em frente ao posto da Polícia Rodoviária, na BA-262.

Isso aconteceu porque o animal fugiu do terreno onde meu pai o solta para pastar no fim do dia e ficou circulando em uma rodovia que fica em frente à nossa casa. O curral, nesse sentido, foi construído pelo Poder Executivo justamente para prender burros e cavalos soltos em rodovias da cidade e, assim, reduzir ou evitar acidentes.

Após ser capturado, o animal é levado em um caminhão para o local, e, para que seja solto, seu tutor precisa pagar uma multa que varia de acordo com a quantidade de dias que o bicho fica apreendido. 

Para conseguir pagar a dívida, meu pai precisou pedir dinheiro emprestado a outros colegas carroceiros, pois não tinha o valor que era cobrado para poder soltar o seu burro, que ficou três dias preso, tempo durante o qual o carroceiro ficou sem receber qualquer tipo de renda.

O curral municipal é uma das poucas ações da Prefeitura de Conquista para oferecer mais segurança aos animais utilizados por trabalhadores para guiar carroças. Após denúncias de maus-tratos repercutirem amplamente na cidade, entre 2016 e 2017, outras medidas foram anunciadas como o emplacamento de carroças e uma determinação para que carroceiros passassem a colocar fraldas de proteção em burros e cavalos utilizados para o serviço.

Ambas, no entanto, não vigoraram como esperado, sobretudo o uso das fraldas. Em 2017, a Prefeitura realizou ainda um pré-cadastramento dos carroceiros que trabalham no município. Naquele ano, foram identificados, ao todo, 265 trabalhadores, que puderam participar de um curso onde foram abordadas regras de circulação no trânsito, seguridade social, proteção aos animais, despejo e reciclagem de materiais transportados. 

A Prefeitura reformou o curral municipal no início deste ano e fez parceria com o curso de Medicina Veterinária da UniFTC para cuidar de animais apreendidos. Foto: Secom / PMVC.

Atualmente, no entanto, não há dados atualizados no site do Executivo sobre o quantitativo de profissionais que atuam prestando o serviço de transporte de cargas com carroças. No período de pré-cadastramento, meu pai concluiu o processo, mas ainda espera pelo emplacamento de sua carroça até hoje, assim como muitos carroceiros que circulam pela cidade. “A gente precisa trabalhar. Não dá pra ficar parado esperando placa de Prefeitura”, afirma.

A partir de uma pesquisa no site do Executivo, é possível observar que, após o ano de 2017, não houve nenhuma outra publicação com divulgação de novas ações educativas ou capacitações para carroceiros. O assunto, aliás, pouco esteve em evidência na mídia local nos últimos anos. 

Em outras cidades e estados do país, entretanto, já se discute o fim das carroças puxadas por burros ou cavalos, como é o caso de Teresina, onde uma vereadora protocolou um projeto de lei que visa instituir um programa de redução gradativa de veículos de tração animal. Em Belo Horizonte, uma lei que prevê a extinção da profissão de carroceiro em até dez anos já foi até mesmo sancionada, apesar de manifestações contrárias da categoria.

Ainda que pouco discutida, essa possibilidade não está completamente distante da realidade de Vitória da Conquista, uma vez que o movimento em defesa da causa animal é bastante forte na cidade, tendo encampado lutas que já resultaram em efeitos concretos para a sociedade conquistense, como a implantação de uma clínica veterinária municipal

Para o meu pai, uma eventual proibição do uso de carroças puxadas por animais em Vitória da Conquista também seria acompanhada de protestos dos carroceiros que atuam no município. Mas, segundo ele, se esse for o futuro que os aguarda, todos terão que encontrar “um novo jeito de viver”, pois no final das contas, “ninguém pode teimar com a lei”, finaliza.

Supervisão e edição da matéria: Afonso Ribas.

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