Artigo | Quando uma biblioteca comunitária vai ao teatro

Por - 25 de outubro de 2023

Como medir o impacto do que provocou e ainda provocará a ideia de que o teatro também é um espaço para moradores da zona rural e da periferia da cidade?

Quando soubemos que o premiado espetáculo “Adelino”, da Companhia Operakata de Teatro, finalmente estrearia em Conquista, no Centro de Cultura Camillo de Jesus Lima, logo surgiu a ideia de conseguir padrinhos que custeassem os ingressos para uma parte dos leitores da Biblioteca Comunitária Donaraça. Nosso público é composto por moradores da zona rural e de bairros periféricos de Vitória da Conquista, como Patagônia e Conveima.

Ir ao teatro, além de ser um presente, seria para nós uma afirmação e apropriação dos equipamentos culturais da cidade, estratégia importante na luta constante pela democratização da cultura, tão facilmente teorizada, mas pouco efetivada na prática cotidiana. Com o apoio da Operakata, a qual agradecemos imensamente, começamos uma campanha entre os amigos mais próximos e, posteriormente, nas redes sociais.

Nem acreditamos quando conseguimos cumprir a meta e finalmente comprar 50 ingressos. Por questões de logística de transporte estabelecemos uma meta de 30 pessoas da zona rural e 20 da zona urbana.

Ao fim do espetáculo e com todo mundo entregue em suas casas, depois de uma pausa para digerir tudo o que nos aconteceu nas últimas semanas, não sai da nossa cabeça a reflexão sobre o que queremos para nós e para os nossos. E como a gente sabe que só se caminha para longe em companhia, agradecemos de coração a todas as pessoas que nos ajudaram a tornar esse sonho possível. Por isso, compartilhamos com vocês de forma afetiva o que mais nos saltou aos olhos.

Abaixo faço uma lista de “primeiras vezes” que consegui capturar em minha peneira, pois ainda não tivemos oportunidade de conversar coletivamente sobre a experiência, uma vez que o momento exigia simplesmente vivê-lo sem necessidade de explicação ou teorização. Em que pesem todas as dificuldades, não desistimos de viver espontaneamente, como quem encena todos os dias um espetáculo único e imperdível.

Como espectadores da sessão do último domingo, 22, de “Adelino”, apenas intuímos o que se passava na casa do cenário, lugar principal das peripécias dos personagens, dos visíveis e invisíveis. Do lado de fora, foi assim que imaginamos o que significou para nós essa tarde especial no teatro:

Primeira vez como público no Centro de Cultura para a jardineira que tantas vezes entrou ali para cuidar do jardim.

Primeira vez para pais e filhos juntos numa sessão para a qual não sabiam o que esperar.

Primeira vez para um menino autista com sua avó querida, que a muito custo largou o trabalho, que nunca cessa, para se dar ao luxo de umas horinhas de descuido.

Primeira vez para os pequenos meninos da zona rural que vieram no ônibus brincando de criar palavras, ação poderosa para quem está apenas começando a desvendar os segredos da escrita e da leitura.

Primeira vez para as catadoras de café que tornam possível a gente começar o dia com uma xícara fumegante desse líquido, que tanto trabalho duro demanda até chegar a nós.

Primeira vez para as senhoras que não dominam a palavra escrita e captaram com tanta emoção cada gesto, cada silêncio, a bela sonoplastia e a movimentação dos atores.

Primeira vez para o moço e a moça da biblioteca que nunca tinham levado ao teatro pessoas que não fossem da sua família mais próxima.

Primeira vez para a professora buscando padrinhos em todas as suas redes.

Primeira vez para o homem e a mulher anônimos que se tornaram padrinhos de teatro, doando recursos para comprarmos os ingressos e pagar o transporte para o pessoal da Biblioteca Donaraça.

Primeira vez para o pedreiro caprichoso que parou o domingo na obra para estar com os filhos e a esposa no teatro.

Primeira vez para as meninas que se arrumaram com tanto gosto e pousaram para fotos como lindas rainhas.

Primeira vez para as costureiras que, dessa vez, sentaram-se para ver o pano cair.

Primeira vez para as adolescentes que não quiseram aparecer nas fotos e tudo bem.

Primeira vez para as meninas que conferiram uma por uma as imagens da exposição no hall de entrada.

Primeira vez para aquela que faz comidas tão gostosas e não sente o sabor do próprio alimento, sonha em comer a comida de outra pessoa e merece mil banquetes.

Primeira vez para a mulher que já trabalhou como atendente de telemarketing em São Paulo e agora estuda para encontrar melhores oportunidades de trabalho que lhe possibilitem tempo e saúde para aproveitar a vida próximo da família e na sua terra.

Primeira vez para a mulher que não para nunca, está sempre cuidando dos outros e pôde se sentar na plateia sem fazer nada além de aproveitar. Lutou contra o sono e a exaustão bravamente, não queria perder nada do espetáculo.

Primeira vez para a senhora que passou a tarde anterior cuidando do cabelo para estar bonita e bem consigo mesma.

Primeira vez para o casal que não sabe por que nunca havia ido ao teatro antes.

Primeira vez para a mulher madura que sonha em ser professora e quer ir ao lançamento de um livro.

Primeira vez para as primas que finalmente estão convivendo na mesma cidade.

Primeira vez para a professora que conta histórias para seus alunos e agora falará do teatro com outro brilho nos olhos.

Primeira vez para os pais que queriam conhecer esse povo da biblioteca.

Primeira vez para os rapazes que vieram com os pais e pagaram o mico de ser abraçados tão efusivamente por quem estava feliz de vê-los ali.

Primeira vez para a mulher que luta contra a depressão e que tantas vezes chorou por se sentir só, esperando por uma visita que nunca chegou.

Primeira vez para muitos de nós que, como leitores habituais ou esporádicos, completamos as cenas e criamos a nossa própria história ao testemunhar um teatro que não precisa da palavra falada para contar uma boa história.

Diante de tudo isso, como calcular o encantamento, a solidariedade e o alcance de uma palavra mágica? De um sim diante de tantos nãos?

Como medir o impacto de 50 pessoas indo ao teatro pela primeira vez, em um espaço cultural fundado em 1986?

77% de ansiedade; 97% de curiosidade; 100 % de surpresa; 99,9% de alegria; 94% de relaxamento.

100% de vontade de voltar, etc.

Como calcular as imagens mentais, a imaginação, as conexões e os afetos gerados durante o espetáculo “Adelino”?

Como medir o que provocou e ainda provocará vida a fora essa ideia de que aquele também é um espaço para nós, moradores da zona rural e da periferia da cidade?

Como medir o desejo de quem não conseguiu ir, mas já se prometeu não perder a próxima oportunidade?

Como medir o poder da amizade e da companhia para tornar a nossa morada um lugar mais alegre e florido?

Só nos resta aplaudir. Bravo! Bravo! Bravo! Evoé!

O projeto “Leitores da Donaraça vão ao teatro” foi uma realização da Biblioteca Comunitária Donaraça – Instituto Relicário. Com a mobilização de Marta Cardoso e Juliana Brito, monitoria de Joelma Oliveira e Fátima Lima, coordenação de Josué Brito Santana. Apoio da Companhia Operakata de Teatro e dos padrinhos que patrocinaram os ingressos e o transporte.

*Juliana Brito é coordenadora da Biblioteca Comunitária Donaraça e secretária administrativa do Instituto Relicário. É graduada em História, com especialização em História Social do Trabalho e graduanda em Biblioteconomia. Participa de coletivos literários e culturais da cidade, como o Escritores Conquistenses, Amantes da Leitura, Bibliotecas em Ação, e o Movimento Cultura VCA.

Fotos de capa: Juliana Brito.

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